O meu, o seu, o nosso lugar no mundo

Na primeira aula de cartografia da faculdade, a professora Adriana nos disse: "Esqueçam tudo o que vocês achavam que conheciam sobre mapas. Vocês foram enganados a vida inteira."

E fomos mesmo.

O meu, o seu, o nosso lugar no mundo

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No primeiro ano do ensino médio, eu entrava com meu material e um mapa mundi e abria do avesso - de propósito - pra garotada ver.

"Professora, tá ao contrário!"
"Profe, tá do avesso o mapa aí."
"Ao contrário, professora."


E eu rebatia: "E quem foi que disse pra vocês que o mundo é assim...

e não assim??"

"Mas professora, é assim nos livros!"
"Ahh, então se o livro disser que beber xixi faz bem pra saúde, você toma?"


Não sei você, mas gosto bastante desse segundo mapa-mundi. Nós estaríamos no hemisfério norte, posição de dominação, né não? Eu sei que ver o mapa assim incomoda. A ideia é essa mesmo. Ver nosso "mundo" de cabeça para baixo dessa maneira depois de uma vida inteira de imagens cristalizadas em nossa mente mexe com nossos referenciais de espaço. Espaço eu digo terrestre, porém devemos lembrar que não existe em cima e embaixo no universo. Isso quem criou fomos nós mesmos. Mapas são convenções aceitas.

Nosso lugar no mundo é definido por muitas variáveis. A própria definição de lugar, a própria definição de mundo, de posição e de qual referencial estamos usando.

Vamos ao caso do mapa. O que você ali em cima é uma convenção. Foi decidido que essa era uma forma aceitável de representação de mundo, mas ela está errada. Acontece que no momento em que a convenção se estabeleceu, o poder pendia na Europa, pendia no mundo ocidental. Todos os mapas do mundo estão errados, da sua cidade, o mapa-mundi do atlas da biblioteca, pois é muito difícil tentarmos colocar num plano o que na verdade nem é tão esférico assim. Por isso que temos a Antártica e a Groenlândia sempre tão distorcidas em mapas. Por isso também que temos vários tipos de projeções, na tentativa de encaixar o redondo no plano.

Encontrar nosso lugar no mundo sempre foi crucial para o desenvolvimento de rotas de comércio, de cidades, de vilas. Mas a forma como vemos o mundo também muda conforme a balança do poder pende de um lado para o outro. Os Antigos Egípcios achavam que eles eram o centro do universo. Os romanos também achavam que eles eram o centro de poder. Cada povo criou mapas a sua maneira e ao contrário do que muita gente fala, os mapas têm pouca relação com a bússola. Recebo sempre comentários desse tipo em um post antigo onde eu falo que os mapas estão errados. Sempre vem gente pra me corrigir, dizendo que os mapas são assim e assado por causa do norte magnético. Um escritor foi me corrigir no Twitter. Não, criança, não é.

Povos já vinham fazendo mapas sem o conhecimento do norte magnético. E temos mapas muito bizarros, como o mapa T-O. O mapa T-O causa estranhamento, mas ele apenas tem o centro do mundo postado em Jerusalém. Mudou a balança de poder, nossa forma de ver o mundo também muda, pois é preciso mostrar quem manda. E se você manda na forma que o mundo têm, então você é dono do mundo. Perceba a ausência da Antártica e das Américas... Isso é o que podemos chamar de mundo pequeno.

Quando vemos o mapa do Brasil na previsão do tempo, sabemos onde estamos. O estado de São Paulo também é fácil de identificar. O do Rio Grande do Norte parece um elefantinho. E a Itália é reconhecível de qualquer lugar com sua bota.

O lugar que você ocupa no mundo mudou ao longo do tempo e o lugar que as pessoas buscam hoje não é o mesmo de antes. Os ideais mudaram, as vontades mudaram, as forçantes mudaram. O sonho americano não satisfaz. Não aceitamos mais as coisas prontas e embaladas, queremos fazer do nosso jeito. Queremos desenhar nossos mapas para que nos sirvam e para que nos identifiquem.

Essa sensação de pertencimento, porém, não é universal. Você já se sentiu deslocado, perdido, Às vezes em uma multidão. Você já seguiu as orientações erradas do Waze. Se nem o polo norte magnético permanece sempre num mesmo lugar, por que você deveria?

O mundo ao contrário, como o mapa-mundi ali em cima, é uma lembrança constante de que não podemos nos conformar. Nem aceitar convenções apenas por elas estarem ali. Aceitou, pronto, acabou. Na-na-ni-na-não. Devemos questionar. Como eu fazia com meus alunos, eu mostrava porque essa convenção dos mapas era benéfica, porque isso auxiliava na navegação global, nos sistemas de GPS, na previsão do tempo, na aeronavegação.

Mas escravidão também já foi uma convenção. Aceitava-se que era assim porque era assim desde o início dos tempos e porque a bíblia diz que pode e porque sempre existiu e porque é assim e porque, porque, porque

porque

porque

porque

Por que?

O mundo como o conhecemos hoje mudou várias outras vezes. Montanhas se ergueram e foram aplainadas. O vulcão na Amazônia, felizmente, está extinto. Os derrames de lava que deram origem à terra vermelha no sul e sudeste do país, também estão extintos. Nossa ligação com a África permanece apenas pelo formato das costas leste do Brasil e oeste do continente Africano.

Imagine viver neste mundo, 650 milhões de anos atrás?

Você consegue identificar algum traço reconhecível nesse mundo? O Waze ficaria doidinho nesse lugar...

Mudanças são a ordem da vida. Mas as pessoas, em geral, têm grande medo delas. E eu entendo. Nem toda mudança é positiva, muitas vezes elas são traumáticas. A mudança pela qual o planeta passou há 250 milhões de anos atrás causou uma extinção em massa que mudou para sempre a face do planeta. Mas sem ela eu não estaria aqui digitando isso.

Não se agarre às convenções. Não se agarre ao que parece sólido. O mar calmo nunca fez um hábil marinheiro. E vire o mapa de vez em quando.

Até mais!

Já que você chegou aqui...

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