Jogos Vorazes, racismo e ficção científica

Esta não é uma polêmica nova, na verdade ela explodiu logo após o lançamento do filme Jogos Vorazes (Hunger Games, 2012), baseado no livro de mesmo nome da norte-americana Suzanne Collins. Para quem não conhece a obra, ela trata de jovens enviados à uma arena hostil para lutarem, onde apenas um deve sobreviver. Estes jovens são tributos enviados dos 12 distritos de Panem, numa lembrança da submissão de todos à Capital. É uma obra adolescente, mas muito pertinente do ponto de vista social e gostosa de se ler. Mas o problema todo começou por causa de Rue, Thresh e Cinna.


Eu me deparei com esta polêmica na semana passada (atrasadíssima, eu sei) e o quanto ela ainda deve ser discutida. Quando vi o que o povo andava escrevendo sobre os três supracitados personagens, fiquei surpresa, de fato. Os três são personagens negros do filme, apesar de no livro Suzanne não deixar claro qual é a cor de Cinna, o estilista responsável pela imagem dos tributos Katniss e Peeta, do distrito 12.

Cinna
Cinna.

Katniss, a personagem mais importante de toda a obra, assim que vê Rue, a descreve:

(…) E mais assustadoramente, uma garota de 12 anos do Distrito 11. Ela tem olhos e pele marrom escuro, mas fora isso ela é muito parecida com Prim no tamanho e no comportamento.

E assim, descreve Thresh:

O tributo do Distrito 11, Thresh, tem a mesma pele escura de Rue, mas a semelhança para aí. Ele é um dos gigantes, provavelmente com seis pés e meio de altura e com a constituição de um boi.

Apesar de estas descrições estarem nos livros, e de assumirmos que a maioria os leu antes do filme, muitos fãs ficaram indignados, pois personagens importantes demais eram negros. Não, você não leu errado, eles ficaram putos e dispararam tweets racistas apenas porque estes personagens são negros. Se isso surpreende, veja os tweets abaixo, retirados do Tumblr Hunger Games Tweets:

Aquele momento estranho em que você descobre que Rue é uma garota negra e não a pequena menina loira e inocente que você imaginou. 

"Por que Rue tinha que ser negra, não vou mentir, arruinou o filme."

"Me chame de racista, mas quando descobri que a Rue era negra, a morte dela não foi tão triste".
RACISTA

"O livro diz pele escura, mas não significa negro. Significa pele escura.
Muitas pessoas têm pele escura e não são africanas."  
Coerência? 

"As duas pessoas do distrito 11, o distrito agrícola onde eles são chicoteados, são negros.
Eu imaginei Rue como Luna Lovegood (Harry Potter)."
 

O último tweet é impressionante, pois Rue, o anjinho morto na arena para o deleite do público, estava associado à inocência que a Capital mata e distorce em cada jogo novo. Mas como que uma menina negra pode ser associada à inocência? Para estas pessoas, uma menina loira e de olhos azuis é inocente, mas Rue, com seus belos olhos castanhos e sua pele negra é de alguma forma revoltante. O horror disso tudo é gente reclamando que no livro fica ~claro~ que Rue e Thresh são brancos. Acho que os trechos descritos por Katniss deixam mais que evidente que eles são negros. E a escolha de um negro para o papel de Cinna foi ótima. Lenny Cravitz está perfeito no papel do estilista que tanto dá força para Katniss.

Inocência, pureza, são associadas apenas às crianças brancas? O_o

Katniss em si, não é loira, nem mesmo é branca. Sua pele é tom de oliva, seus cabelos são pretos e lisos, como descrito nos livros da trilogia várias vezes. Ela lembra muito mais uma nativa-americana. A atriz Jennifer Lawrence não pensou duas vezes e tingiu seus longos cabelos loiros para combinar com a personagem. No entanto, nos livros fica bem claro que sua vida e de sua família é bem difícil, com fome, escassez e a Katniss do filme acabou um tanto diferente da descrição da autora. Bem diferente.

Dois grandes problemas estão aí:

  • interpretação de texto e atenção: Se alguém lê um livro e não se lembra que os personagens foram descritos como negros, é sinal de ter faltado nas aulas.
  • dominação e racismo: para descrever uma mulher como branca, apenas se fala mulher; quando é preciso descrever uma mulher negra, fala-se mulher negra. O mesmo vale para homem, criança, como Collins fez em seu livro.

(...)quando não se diz a cor, a etnia, a raça, ela é branca, ocidental, europeizada.

Blogueiras Feministas

Este não é um evento isolado. Na literatura em si, vemos que os autores precisam descrever seus personagens desta maneira para deixar clara a diferença entre eles. Não é nem por mal, mas para mostrar a  diversidade de seus enredos. Na ficção científica temos uma dominação de personagens brancos, vemos isso nas séries e filmes constantemente. Não é de estranhar que os Klingons, tidos como selvagens, brutos e agressivos, são todos retratados com a pele escura, pois na ficção em geral, os negros são apresentados como guerreiros e/ou chefes tribais.

Já falei neste post aqui sobre a questão da diversidade e a necessidade de inclusão de personagens que fujam do estereótipo de branco-hetero-ocidental. Isso está tão marcado na cultura, que um leitor pode passa por cima ao ler um livro, o que aconteceu com os fãs racistas que execraram Rue, Thresh e Cinna por causa da cor de suas peles. O que eles representam, o mundo em que eles vivem, o modo cruel com o qual crianças e adolescentes se matam em arenas, isso nada importa para aqueles que reclamaram sobra o tom de pele. É assustador ver uma sociedade que credita as pessoas por características físicas, de gênero, de orientação sexual, de credo e mais assustador ainda saber que isso não vai mudar tão cedo.

A análise social de Jogos Vorazes é excelente, é uma trilogia que vale à pena ser lida, caso alguém tenha dúvidas ou certo preconceito com a obra por ela ter se popularizado. No que ela difere da nossa sociedade, onde os jovens morrem e se matam de forma violenta? Será que estamos tão distantes de Panem assim? A diferença é que lá a escolha é clara entre os tributos, na nossa sociedade, é a condição sócio-econômica, a violência nas grandes cidades, violência no trânsito, tráfico de drogas que matam nossos jovens de maneira igual ou mais violenta.

Também vale à pena fazer uma reflexão com toda essa polêmica. Até onde vai o preconceito e o racismo das pessoas quando sua obra/livro/filme não os agradam? Rue é a personagem mais carismática de toda a obra e Katniss com frequência se lembra dela nos livros seguintes. A ficção científica, por sua tradição de inclusão e diversidade tem incluído e diversificado da maneira que a sociedade precisa ser representada? São pontos a refletir e se trabalhar, pois acho que temos um caminho longo a percorrer, já que uma criança é chamada de "vagabunda negra", só porque não corresponde aos ideais de inocência, beleza e pureza que algumas pessoas têm.

E para terminar, fico com a elegância do grande George Takei, o senhor Sulu, da Enterprise:

Alguns fãs revoltados com atores negros em Jogos Vorazes.
Jovens matando uns aos outros em arenas futuristas e eles se preocupam com a cor? 

Até mais!

Leia também:

Jogos Vorazes e o Racismo
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Diferenças relevantes
Estereótipos étnicos em Star Wars
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Eu te amava… até saber que você é negra!


Comentários

  1. Bacana a matéria. Infelizmente adaptações cinematográficas são grandes reveladoras do racismo dos leitores. Algo como "Não! Eu gosto desse personagem, me identifico com ele, não é possível que seja negro...". Realmente triste.

    Às vezes fico surpreso com a escolha de atores, mas é sempre bom pensar nos pontos positivos desta escolha para além da mera fidelidade com o livro. Um exemplo disso foi a escolha de Idris Elba para interpretar Rolland Deschain na adaptação de A Torre Negra que sairá em breve. O pistoleiro é claramente descrito como branco em alguns pontos da obra, até sendo chamado de "branquelo" por outra personagem negra em dado momento e o próprio Stephen King ressalta com frequência o azul dos olhos dele e a clara referência visual/conceitual ao Clint Eastwood, então me causou um breve estranhamento saber que seria interpretado por um ator negro. Contudo, um momento depois eu já estava pensando que Roland ser branco ou negro não faz diferença significativa pra história e que Idris é um ator foda, então já não me importava.

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