Chernobyl e as mentiras convenientes

Eu tinha 6 anos quando Chernobyl virou notícia mundial. Lembro de assistir na nossa pequena TV Toshiba o repórter Renato Machado, que nem grisalho estava ainda, falando de um desastre de grandes proporções na União Soviética. Pra minha cabeça de 6 anos, eu entendi que uma nuvem de veneno estava se espalhando pelo mundo e as pessoas caíam mortas ou pulverizadas no chão. O medo ficou maior quando no ano seguinte aconteceu o desastre de Goiânia e aí a radiação se tornou um pavor pessoal. Mas a compreensão dos fatos só veio mesmo na faculdade, 20 anos depois. Em nossas aulas sobre geopolítica, até falávamos se o desastre no reator 4 da usina em Chernobyl era o começo do fim da URSS.

Chernobyl e as mentiras convenientes

Com eventos baseados nos relatos das testemunhas do desastre, compilados pela incrível Svetlana Alexiévitch em Vozes de Tchernóbil, a minissérie da HBO tem uma das pontuações mais altas nos sites especializados e vem sendo muito elogiada pela crítica e pelo público. Na Rússia, por sua vez, muitos ficaram incomodados e ofendidos pela forma como as autoridades soviéticas foram retratadas. Parece até que uma série russa sobre a visão deles do desastre está para vir.

Eu entendo porque a série ofenderia os russos, porém a série não é sobre a ineficiência do regime soviético (ou não só a respeito disso). A série é sobre as mentiras. É interessante olhar o momento em que a série estreou, o momento mundial atual, onde autoridades dos governos não têm a menor vergonha de falar em "pós-verdade", em apoiar o anti-intelectualismo e em renegar a ciência porque ela não combina com a agenda política. O que sempre falo sobre as metáforas da ficção científica que nos fazem enxergar a realidade foi utilizada em Chernobyl, se valendo do desastre da usina, um evento que de fato aconteceu, para se criticar o presente. A explosão do reator número 4 serve de ponto de partida para uma parábola do mundo moderno.

A linguagem política destina-se a fazer com que a mentira soe como verdade e o crime se torne respeitável, bem como a imprimir ao vento uma aparência de solidez.

George Orwell

O espectador desatento pode achar que a série fala sobre como o falho sistema soviético arriscou a vida de seus cidadãos, sem dar à ciência a atenção necessária que poderia ter impedido as mortes, a contaminação, a explosão e a evacuação da cidade. Podemos e devemos ficar indignados com a demora na tomada de decisões, em como as verdades estavam na cara das autoridades, que se negavam a enxergar o óbvio.

Mas este espectador desatento, que vocifera nas redes sociais sobre como o socialismo é falho, está ignorando a realidade e o atual momento de várias nações, incluindo a nossa, em que governos declararam guerra à ciência e à educação descaradamente. O próprio Legasov, no primeiro episódio, comenta enquanto grava suas fitas K7: "qual é o preço das mentiras?". O desastre na usina levaria o povo a perder a fé no sistema, a deixar de acreditar na eficiência do governo, o que é um desastre quando as instituições se tornam interessadas em apenas permanecer de pé.

É dessa forma que mentiras começam a ser contadas, a verdade ignorada, a repetição das "fake news" vira algo tão frequente, que a verdade se perde no meio de tantas notícias e fatos desencontrados e distorcidos. É mais fácil aceitar a mentira conveniente do que a dura verdade. Quando Legasov fala que os reatores soviéticos eram falhos desde o projeto, porque eram mais baratos, era essa a dura verdade que o sistema não podia suportar, então era mais fácil apontar outros culpados - o então diretor de Chernobyl, Viktor Bryukhanov, o engenheiro-chefe, Nikolai Fomin, e o engenheiro-chefe adjunto, Anatoly Dyatlov.

Transportando o incidente para os dias atuais, existem várias verdades inconvenientes para aqueles que estão no poder e podem tomar decisões. Desde o início de seu mandato, Trump vem se posicionando contra basicamente tudo o que diz respeito às mudanças climáticas globais. Mandou retirar qualquer menção às mudanças dos sites oficiais do governo, retirou poderes da Agência de Proteção Ambiental do país e ainda quer retirar os Estados Unidos dos acordos de Paris sobre o clima. Não só isso, ainda disse ao Príncipe Charles, em sua visita ao Reino Unido, que os Estados Unidos possuem as mais altas estatísticas relacionadas ao clima e ao meio ambiente.

A gente até poderia pensar que seria desinformação ou apenas a boa e velha burrice. Mas tudo isso faz parte de um projeto sólido de ataque à ciência e ao conhecimento em defesa do capital, das megacorporações, do dinheiro fluindo. No Brasil não estamos distante do mesmo cenário, com o atual (des)governo que vem ratificando as maiores barbaridades e ignorando as evidências e dados providos por agências sérias como a Fiocruz e o IBGE? Eles não concordam com os dados, então atacam as instituições e criam mentiras convenientes que se encaixem em seus projetos. É monstruosamente óbvio.

Isso não é algo novo. Quando evidências científicas mostraram que o tabaco estava diretamente relacionado ao câncer de pulmão e várias outras doenças, o ataque aos dados e aos cientistas envolvidos começou. Rachel Carson, quando lançou seu primoroso livro Primavera Silenciosa, sobre os riscos dos pesticidas no meio ambiente, sofreu forte oposição da indústria e panfletos e artigos foram escritos em defesa do uso de pesticidas. A história sempre se repete: aqueles que trazem verdades inconvenientes sofrerão pressão daqueles que preferem a mentira disseminada sem controle.

Acontece que hoje elas fazem parte do projeto de governos inteiros. Ao invés de fornecerem fatos, oferecem "fatos alternativos", renegam o conhecimento e buscam encaixar a realidade em seus próprios projetos, para que assim achem justificativas para qualquer atrocidade que queiram cometer. Como a liberação no Brasil de pesticidas que já foram proibidos lá fora, mesmo com os riscos para a polinização devido ao colapso das abelhas, ao risco de contaminação e bioacumulação nos organismos. A desculpa é para fortalecer o agronegócio.

Muita gente reclama que os millenials estão desanimados demais com o futuro e que eles reclamam demais sobre os rumos do mundo. Me diz como não ficar desanimada com o futuro quando o clima do planeta está em um caminho sem volta para uma mudança global catastrófica, quando vemos ataques aos direitos duramente assegurados e a grupos historicamente oprimidos? Como acreditar nas autoridades que renegam as verdades óbvias e os dados que mostram aumento da desigualdade, da pobreza, da fome? Como pensar que o mundo pode ser um lugar melhor quando fatos, dados e evidências são descartados por que não são úteis para aqueles que estão no poder?

O grande trunfo da minissérie Chernobyl é usar um evento científico real, com um roteiro ficcional, para nos fazer entender a ciência por trás do desastre e ainda transportar suas análises para o momento presente. Não é sobre radiação, é sobre mentiras. Aquelas que cabem nos projetos dos poderosos. Seja a URSS, seja o Brasil, seja os Estados Unidos.

Frequentemente me perguntam por que sempre escrevo sobre temas trágicos. Porque é assim que vivemos.

Svetlana Alexiévitch

Leia mais:
Chernobyl’s stellar finale makes a case for the show as science fiction - Vox
This is how scientists are keeping Chernobyl’s radiation contained - Tha Washington Post

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Comentários

  1. Concordo totalmente!
    Também era uma criança pequena ainda, mas lembro bem dos telejornais falando sobre Chernobyl e sobre o césio-137 no ano seguinte, aqui no Brasil.
    Meu esposo e eu acompanhamos a série Chernobyl e foi impossível não traçar este paralelo sobre as mentiras convenientes retratadas na tela e os governos atuais.
    Este seu artigo é mais que necessário e uma boa análise não só da série mas da conjuntura atual. (Em tempo,série muito bem feita, aliás).
    Abraços e boa semana!

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  2. Lembrei muito do livro "A morte da verdade", da Michiko Kakutani, que fala sobre as mentiras da era Trump. Li no início do ano e fiquei impactada, pois é impossível não fazer a ligação com o que está acontecendo no Brasil. E, ao assistir Chernobyl, tive a mesma sensação de mentiras que são contadas mil vezes, de "fatos alternativos", de negação da história. A série me deu a coragem de pegar "Vozes de Tchernóbil" para ler. Só espero que a Svetlana seja devidamente creditada pela HBO.

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