As mulheres estão destruindo a ficção científica!

Há quem diga que a ficção científica não é um gênero que as mulheres gostem nem um gênero que as mulheres escrevam. Há quem diga que a mera presença de mulheres na FC está destruindo o gênero ou então o desfigurando completamente. As críticas, no entanto, não são recentes, já vêm de décadas atrás, de editores, escritores e leitores, principalmente homens, que acham que a ficção científica não é algo para a gente.


As mulheres estão destruindo a ficção científica!

Em março de 1991, a escritora de ficção científica Pat Murphy disse:

O que é mais significativo na confusão do meu amigo era relacionado a um rumor persistente, que eu já tinha ouvido, ecoando pela ficção científica. O rumor diz, em essência, que mulheres não escrevem FC. De forma mais direta, ele diz "essas malditas mulheres estão arruinando a ficção científica". Elas fariam isso escrevendo enredos que não são ficção científica de verdade; elas escreveriam uma ficção científica e fantasia soft.

É bastante irônico, para não dizer emputecedor, ver esse tipo de boato besta dentro da FC e que continua nos dias de hoje, sendo que a obra que inaugurou o gênero partiu de uma mulher. Mary Shelley escreveu Frankenstein e revolucionou um mercado literário notadamente marcado por autores homens em praticamente todos os segmentos. Shelley começou a escrever seu mítico enredo quando tinha somente 19 anos, entre 1816 e 1817, e a obra foi primeiramente publicada em 1818, sem crédito para a autora na primeira edição. Considera-se que a terceira edição, de 1831, seja a definitiva.

Muitos homens acham que mulher não pode escrever ficção científica porque ciência e tecnologia não nos interessa. O que interessaria para autoras e leitoras é romance com amor, livros sobre como conquistar homens poderosos, livros eróticos e romances de banca de jornal. Para muita gente, é só isso que lemos e que devemos ler, reduzidas a um mercado de "nicho", voltado para mulheres. Engraçado que não falam de livros para homens, tampouco como sendo de nicho quando um livro é escrito por um homem nos enredos tradicionais.

Também existe a crítica sobre a qualidade dos enredos, que mulher não saberia escrever sobre FC Hard - onde a ciência e a tecnologia seriam mais importantes. Mulher só saberia escrever sobre FC soft, que foca mais nas relações humanas, na sobrevivência, nos papéis de gênero, na relação da sociedade com a tecnologia e com a ciência e coisas assim. Não entendo o porque de criticarem isso, afinal de contas ficção científica não é apenas a FC Hard. Dentro dela temos vários subgêneros que podem muito bem ser permeáveis entre si. Reduzir uma produção a apenas um único estilo é ser reducionista demais.

Recentemente li ótimos livros de FC escritos tanto por homens como por mulheres, mas nas obras eu percebi que a interação humana era mais importante que a tecnologia em si. Silo foi escrito por um homem e as relações humanas ali foram muito bem exploradas e a protagonista feminina é completa. Brilho foi escrito por uma mulher e também tem ótimas reflexões sobre a sociedade, além da sua relação com as naves que transportam o que restou da humanidade para um novo sistema solar. Não é apenas a escritora que anda escrevendo sobre a humanidade na ficção científica, o mercado anda bastante voltado para isso e não vejo problema algum.

Pessoalmente, eu não gosto de FC Hard, porque acredito que a relação das pessoas com a ciência e com a tecnologia é o que move a ficção científica e gosto de ler sobre isso. Mas isso é um gosto meu, é algo em que acredito. Eu não vou pedir para acabar com toda a FC por causa disso, pois sei que a FC Hard tem muitos fãs e leitores. Não vou pedir para baixar uma regra única para toda a FC. Então, por que ainda existe gente que pensa isso?



O print acima foi retirado de um post que o Thiago Leite, da Teia Neuronial, fez. É a melhor resenha sobre o Universo Desconstruído que tive o prazer de ler. O leitor acima simplesmente achou ~impressionante~ que mulheres tivessem escritos os contos do UD (e não viu que tinha homens também). E justamente o principal propósito da coletânea era quebrar estereótipos e mostrar que mulher sabe muito bem fazer ficção científica. Melhor demonstração impossível de que mulher não veio destruir a ficção científica, ela veio é para quebrar preconceitos e estereótipos.

As mulheres estão destruindo a ficção científica? Elas estão destruindo a visão que se tem delas dentro da FC, estão destruindo os estereótipos negativos de gênero (homem fodão-pegador; mulher vítima-bibelô). Estão destruindo o monopólio masculino para mostrar que podemos muito bem imaginar o futuro e criar mitos. Estão destruindo uma imagem cristalizada há muito tempo no imaginário de que mulheres não gostam de ciência e tecnologia, tampouco leem livros com essa pegada ou escolhem carreiras com essa pegada. As mulheres estão destruindo essa visão de que a ficção científica é apenas para homens brancos cis e heteros, afinal o futuro tem que abranger todo mundo.

Escritores de ficção científica, de certa maneira, têm o poder de controlar sua mente. Quando você se debruça sobre um bom livro, passa a acreditar no mundo do autor, na maneira que o autor pensou a funcionalidade deste mundo. Se um livro é atraente, você acredita nela em algum nível muito profundo. O mundo retratado no livro se infiltra em seu inconsciente e se torna parte de sua experiência do mundo. A verdade do escritor, a verdade de Heinlein, a minha verdade, torna-se a sua verdade.

Pat Murphy

Então, ao invés de destruir o gênero, estamos apenas destruindo estereótipos negativos para enriquecer a FC, trazendo mais gente para dentro dela. O medo infundado de mulheres ~destruindo~ a FC nada mais é que medo de dividir, medo de ter mais gente no clube, medo de admitir as injustiças cometidas com escritoras, editoras, ilustradoras, contistas e organizadoras de eventos e coletâneas. E o principal, temos muita literatura YA (young adult) de ficção científica, portanto nossos jovens estão lendo sobre mundo pós-apocalípticos, naves-mundo, conflitos sociais, racismo, sexismo, tudo isso ambientado, em sua maioria, em livros escritos por mulheres. Vai ter mulher na ficção científica sim, e se reclamar serão muitas!

Até mais!

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