A Personagem Feminina Forte®

As séries de TV e os filmes estão mostrando cada vez mais personagens femininas fortes, decididas, com personalidade e que botam a mão na massa quando é necessário. Temos bons exemplos de mulheres cuja independência nas telas dá uma amostra das mudanças sociais das últimas décadas, onde as mulheres estão ocupando mais espaços. No entanto, nem tudo são flores. Tem um sério problema na construção dessa Personagem Feminina Forte®.

A Personagem Feminina Forte

Eu sou uma das primeiras a afirmar que uma personagem feminina, que não seja somente um bibelô ou um enfeite na tela, é mais que desejável. Todos os seres humanos são dotados de múltiplas camadas, de bem e de mal e baixar um padrão para personagens é errado. Isso não nos representa, apenas nos estereotipa e faz com que toda uma indústria acabe voltada para um público masculino, branco e heterossexual. É possível olhar para um corpo e erotizá-lo ou objetificá-lo, desde que essa não seja a única função deste corpo.

Ao olharmos para algumas representações femininas temos a enganosa sensação de achar que todas as personagens são fortes e independentes. Eu digo enganosa porque em alguns filmes a personagem feminina tem tudo para despontar como sendo alguém tão relevante para o enredo quanto o personagem masculino e, no fim, não é o que acontece. É interessantíssimo colocar mulheres fortes na tela, mas em alguns casos parece mais um cala a boca do que representatividade. Além disso, o que é força? Como definir essa fortaleza em um personagem?

Vejamos o caso de Trinity, na Trilogia Matrix. Forte, decidida, inteligente, hacker. Detona tudo quando passa. É baleada e depois morre, tudo para fortalecer a missão do herói, Neo. Especialmente em Matrix Revolutions ela praticamente nada fez, a não ser morrer e viver constantemente apaixonada por ele. E quem lembra do começo do filme deve lembrar também que o Merovíngio ficou sob a mira de sua arma, onde ela reafirma que morre sem pensar nem duas vezes, desde que isso salve Neo.

Essa tendência de mostrar personagens femininas fortes, mas que pouco colaboraram para os enredos onde estão inseridas ou que pouco fazem em tela além de morrer ou se ferir pelo herói, tem recebido o nome de Síndrome de Trinity, justamente pelo final que a personagem de Matrix teve. Outra personagem de Matrix que também me incomoda é aquela que está fazendo mísseis não para defender Zion, mas apenas porque ela quer ver o amado novamente. Nada contra em querer rever a pessoa amada numa guerra, mas defender seu lar pensando apenas em si mesma não me parece muito heroico, digno de uma personagem forte. Os heróis sempre colocam sua independência e o sacrifício pessoal acima de qualquer outra coisa. A personagem feminina se junta a uma luta para rever o herói ou para ajudá-lo em sua missão.

Temos também o caso de Tauriel, em O Hobbit, A Desolação de Smaug. Ela não existe originalmente no enredo do livro, porém foi adicionada no filme para trazer uma personagem feminina que ficasse mais tempo na tela e que fosse forte. Ela mata orcs e aranhas, dá show em cena, mas sua personalidade é praticamente suprimida e só aparece quando tenta salvar o anão Kili, se envolvendo em um bizarro triângulo amoroso que, em si, não faz nenhum sentido. Mais uma personagem forte e sem função alguma.

Tauriel

Carol Marcus, em Star Trek Into Darkness, é outro caso clássico de mulher forte sem função alguma, além de ser resgatada pelo herói. Em Oblivion a coisa piora consideravelmente, já que a personagem forte de Andrea Riseborough, Vika, é praticamente vaporizada por um drone alienígena porque está morrendo de ciúmes de Julia, de Olga Kurylenko, a esposa perdida do herói. No fim, para completar a missão, ele coloca Julia em uma câmara de estase e parte sozinho para o Tet. Duas personagens fortes, inteligentes, profissionais, cuja única função é chamar a atenção do herói.

O que os roteiristas e diretores precisam pensar antes de escrever uma personagem assim é se eles seriam esta mulher que escreveram. Eles gostariam de agir daquela forma?, pois afinal seus personagens homens apresentam múltiplas camadas em sua jornada, sendo que a personagem mulher acaba orbitando em volta dele. Outras perguntas que eles devem se fazer:

  • Sua personagem feminina falha ao realizar qualquer feito significativo no enredo?
  • Ela só existe para atender as necessidades do herói masculino, seu desenvolvimento, ou motivações?
  • Essa personagem feminina pode ser substituída por um objeto inanimado?
  • Sua personagem feminina forte é a mais inteligente, mais cruel, mais rígida, ou mais experiente na trama, até que o protagonista chega?
  • Ela desaparece da metade do filme para frente por que morreu ou por que é refém?
  • Ela é estuprada, agredida ou morta durante a trama para motivar o herói?

O que fazer para mudar esse cenário? Como construir personagens femininas que sejam múltiplas em si mesma? Mais mulheres roteiristas e diretoras, mais mulheres escrevendo sobre mulheres, já daria conta do recado. Não é um trabalho impossível. Rita Vatraski, por Emily Blunt, em No Limite do Amanhã, é uma personagem feminina com esta pegada. Ela é valente, engraçada, inteligente, ágil, ela não orbita Cage (Tom Cruise), ela é independente por si mesma. Mesmo que a personagem troque a ação e o perigo para viver ao lado de seu amor, ela deve tomar essa decisão sozinha, sem ser um satélite orbitando o personagem masculino.

Os estereótipos, geralmente, são incompletos. Personagens bem construídos são sempre um prato cheio para qualquer enredo, especialmente aqueles tidos como fortes. Os personagens masculinos jã estão nesta fase, mas os femininos precisam evoluir mais.

Até mais!

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Gostei muito desse texto e infelizmente além de satisfazer muitos filmes - principalmente de ação, aventura e ficção científica - satisfaz muito dos livros Jovem Adulto que estou lendo, uma tendência que eu acho preocupante. Deixamos as protagonistas tipo Branca de Neve que se assustam com a natureza de lado, mas demos novas roupagens a esse tipo de personagem. Nos livros - até em filmes e novelas - até quando a personagem feminina é a central da história, ela é facilmente descartada e acaba indo para escanteio para destacar o personagem masculino.

    A Rita de No limite do Amanhã não tem é tão ruim, mas não acho que sirva de exemplo, pois ela também está ali para ensinar o personagem do Tom Cruise e guiá-lo para salvar o mundo. E ainda tem um ensaio de romance totalmente desnecessário ali. Sem contar que fico sempre com a sensação de que o personagem do Tom Cruise movia mundo e fundos para a Rita permanecer viva só porque ela é gostosa, mas isso é assunto para outro artigo.

    ResponderExcluir
  2. Lisbeth Salander, o personagem de Rooney Mara em Millennium, e o tosco título: os homens que amavam as mulheres, é uma personagem bem marcante. Pena não ter lido o livro.

    ResponderExcluir

Form for Contact Page (Do not remove)