Sabe aqueles livros que vão causando um desconforto crescente de tanto que ele se parece com a realidade? E quando a gente menos espera, acaba se vendo numa distopia tão real que o limite com a ficção se borra de maneira irreparável. O hotel dos sonhos é desse tipo e deixa a gente com um gosto tão amargo com o fim da leitura, que não dá para deixar de pensar nele.
O livro
Imagine que no futuro uma empresa tem o poder de gravar seus sonhos por meio de um dispositivo médico. A Dreamcloud vende que isso vai te ajudar a dormir melhor, que vai desligar seu cérebro para que você possa ter noites melhores, enquanto também coletam dados valiosos de seus sonhos. Quando Sara Hussein adotou o dispositivo, era nisso que ela pensava, em melhorar sua qualidade de vida. Mas um dia, voltando de um evento de trabalho em outros país, Sara é detida no aeroporto. Segundo as autoridades, seus sonhos provavam que ela era uma ameaça e assim ela foi levada para um centro de retenção, onde passa a ser vigiada por meio de regras que mudam todo dia. A impressão que ela tem é que qualquer gesto pode prolongar sua permanência, que qualquer gesto pode ser visto com suspeita pelos guardas, que não parecem ter muito apreço pelas mulheres ali detidas. Algumas passam meses até ter direito à liberdade novamente.
A liberdade não é uma tela em branco (...). A liberdade é abundante, complicada e, sim, arriscada, e só pode ser escrita na companhia de outras pessoas.
Cada mulher naquele centro de retenção tem uma história e a autora se ocupa de contar quais são. Ainda que esteja morrendo de saudades das bebês gêmeas e do marido, Sara acaba conhecendo e fazendo amizade com muitas delas. O mal-entendido do aeroporto parece quase irreal de tão arbitrário que foi, mas Sara não pensou que seus sonhos pudessem denunciar que ela seria uma ameaça a quem quer que fosse. Ela trabalha, volta para casa, para as filhas e o marido. Mas conforme as autoridades, ela é um risco ao marido por conta de seus sonhos. E o que ela esperava que fosse só um mal-entendido, se transforma em retenção (eles não entendem esse período como detenção e sim como uma precaução). Lembra da divisão pré-crime de Minority Report? Em certos aspectos é bem isso que lembra.
Os trâmites legais não são bem o foco, ainda que existam no livro. O foco é o que esse tempo de retenção faz com aquelas mulheres. Sara nunca pensou que se tornaria um alvo, assim como muitos nos Estados Unidos não pensavam em ver a ICE (polícia de imigração) batendo na porta. E se essa mulher quiser manter contato com o mundo, precisa pagar por isso. Assim, as famílias depositam um dinheiro nas contas das retidas para que elas possam comprar algo na loja interna, para que possam pagar por encomendas. A comida não é das melhores, mas com dinheiro na conta pode-se comprar um doce na loja. Além disso, elas precisam trabalhar para empresas de dados enquanto cumprem seu tempo.
Este é um estado de hipervigilância, que corrompe identidades, separa famílias, desfaz vínculos afetivos e acaba por redefinir o que significa ser uma pessoa livre. Nossos sonhos costumam ser bagunçados, até perturbadores, mas não podem ser usados contra nós para os tirar a liberdade, pois eles não dizem nada. É o nosso cérebro reciclando suas informações, fixando memórias, portanto eles serão caóticos e sem sentido. Mas muita coisa na realidade também é caótica e sem sentido e se uma empresa conseguir criar um dispositivo capaz de ler nossos sonhos, pode ter certeza de que ela o fará.
Sara não cometeu nenhum crime. Mas talvez tenha sido denunciada por ter sonhado com isso. Ou por causa da discussão acalorada que teve com um lunático nas redes sociais. Ou talvez tenham sido as imagens de rebeldes marroquinos do início do século XX que ela vinha publicando na internet. Seja qual for a causa, Sara se vê encarcerada no deserto da Califórnia porque um algoritmo determinou que ela representa um risco iminente. Qual exatamente seja esse risco, quando e sob quais condições ela poderá ser libertada, é uma incógnita, porque cada transgressão resulta em um aumento dos dias de detenção. Não adianta se comportar e cumprir o que é exigido, pois se um guarda encrencar com a mulher, ele pode aumentar seus dias lá dentro.
O sistema atribui aos indivíduos uma pontuação, um score, que determina a probabilidade de uma pessoa cometer um crime violento, mas o método de cálculo dessa pontuação é confidencial. Os locais onde esses indivíduos de alto risco são mantidos para observação são administrados por uma empresa privada chamada Safe-X, que terceiriza o trabalho dos detidos para outras corporações, oferecendo-os como mão de obra barata. Pode parecer uma distopia total, mas está tão longe assim da realidade? Nós de fato entendemos como funcionam os algoritmos e o que eles estão buscando? Estamos o tempo todo sendo medidos por sistemas artificiais que vendem nossos dados para quem puder pagar. Laila apenas deu um passo a mais e monetizou os sonhos também. O algoritmo é tão cruel que impede que as mulheres detidas exerçam seus hobbies mais queridos, como tocar um instrumento, por exemplo. Isso é o algoritmo em ação.
A lei separa o permitido do proibido, mas não exige que um crime seja cometido antes que os agentes que atuam em seu nome utilizem todo o seu poder.
Lá fora, muitos críticos estão comparando O hotel dos sonhos com Minority Report, obra de Philip K. Dick, publicada em 1956. Mas Minority Report é narrado pela perspectiva da polícia. Lalami, por sua vez, nos leva a uma profunda reflexão psicológica sobre o que significa ser encarcerada sem o devido processo legal em um mundo onde seu destino é decidido por algoritmos. Ou seja, qualquer humanidade é retirada do processo e qualquer exceção à regra é apagada para dar a impressão de que o sistema é imparcial e que isso manterá as pessoas mais seguras. Mas o que Sara Hussein vive e vê é um sistema que removeu pessoas inconvenientes ou que apresentem algum nível de transgressão e rebeldia, do convívio social. A humanidade, tal como a liberdade, é complicada, arriscada e só pode ser escrita na companhia de outras pessoas, parafraseando a própria autora.
Conforme eu acompanhava Sara em seu período de detenção que nunca parecia ter fim, me sentia incomodada com aquele sistema, porque ele não me parecia uma ficção. Parecia uma reportagem de algum grande portal de notícias que falava sobre uma tal de Sara Hussein, porque o que lemos no livro não está distante da realidade. Aliás, está tão perto que deveria nos fazer repensar nosso relacionamento com os algoritmos, com as máquinas e com os sistemas artificiais. A escrita da autora pode incomodar num primeiro momento, porque parece que nada faz sentido naquele mundo, mas conforme as peças vão se encaixando, a distopia fica cada vez mais real.
A autora soube dar vida a esse futuro próximo (ou um quase presente?) de maneira cativante. Grande parte da história é apresentada como uma narrativa onisciente em terceira pessoa. Mas, entre esses momentos, Lalami insere fragmentos de e-mails, relatórios corporativos e trechos de um manual de procedimentos, tudo isso oferecendo uma visão dos sistemas que mantêm pessoas como Sara detidas indefinidamente.
A tradução foi de Laura Folgueira e está muito boa. A revisão dá umas escorregadas aqui e ali, mas de maneira geral não atrapalham a leitura.
Obra e realidade
A autora começou a escrever esse livro lá em 2014, mas acabou parando para escrever outro romance. Foi na pandemia e em seu confinamento obrigatório que ela se viu voltando para Sara Hussein. Ainda que este seja um enredo focado num futuro próximo, Laila pesquisou várias fontes já publicadas, que falam de períodos do passado. Alguns dos livros consultados foram Sonhos no Terceiro Reich, de Charlotte Beradt; O livro da interpretação dos sonhos, de Muhammad ibn Sirin; Eu, Pierre Rivière, de Michel Foucault; Discurso sobre a servidão voluntária, de Etienne de la Boétie e; A era do capitalismo de vigilância, de Shoshana Zuboff.A expressão “precaução, não punição”, utilizada algumas vezes ao longo da leitura, foi inspirada pela conclusão do caso Wong Wing v. Estados Unidos, que determinou que a detenção de imigrantes “não é prisão no sentido jurídico”. Já os termos de serviço que aparecem no final da Parte 1 são uma mistura de acordos padrão usados por várias empresas de tecnologia (sabe aqueles textos que a gente nunca lê e sempre aceita?).

Laila Lalami é uma escritora e ensaísta marroquino-americana.
A empresa tinha permissão para conduzir uma observação forense das retidas e, se necessário, discipliná-las em nome do governo.
PONTOS POSITIVOS
Sara Hussein
Bem escrito
Perturbador
PONTOS NEGATIVOS
Capa genérica
Sara Hussein
Bem escrito
Perturbador
PONTOS NEGATIVOS
Capa genérica
Avaliação do MS?
Foi uma leitura intensa e revoltante em vários momentos. Sara Hussein pode ser qualquer mulher obrigada a se conformar ou se confinar para caber num mundo cada vez mais desumano e mais máquina. É aquela leitura que fica com a gente depois que viramos a última página. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!
Até mais!
Já que você chegou aqui...

Comentários
Postar um comentário
ANTES DE COMENTAR:
Comentários anônimos, com Desconhecido ou Unknown no lugar do nome, em caixa alta, incompreensíveis ou com ofensas serão excluídos.
O mesmo vale para comentários:
- ofensivos e com ameaças;
- preconceituosos;
- misóginos;
- homo/lesbo/bi/transfóbicos;
- com palavrões e palavras de baixo calão;
- reaças.
A área de comentários não é a casa da mãe Joana, então tenha respeito, especialmente se for discordar do coleguinha. A autora não se responsabiliza por opiniões emitidas nos comentários. Essas opiniões não refletem necessariamente as da autoria do blog.