Resenha: Mulher, vida, liberdade, de Marjane Satrapi (Org.)

Marjane Satrapi é um nome bastante conhecido dos fãs de quadrinhos e graphic novels devido ao seu famoso Persépolis, uma autobiografia em um Irã que passava por drásticas transformações. Marjane se despediu de sua carreira de quadrinista em 2004, foi convidada a organizar uma coletânea que contasse o que estava acontecendo no Irã em 2022 após um evento revoltante: a morte de Mahsa "Jina" Amini nas mãos da polícia da moralidade por não usar o véu do jeito "correto".

Parceria Momentum Saga e Companhia das Letras

O livro
Dois dias antes de completar um ano da morte de Amini, a editora parisiense L’Iconoclaste lançou Mulher, vida, liberdade. Aqui, Marjane renuiu três especialistas sobre o assunto: Farid Vahid (cientista político), Jean-Pierre Perrin (jornalista) e Abbas Milani (historiador), além de 17 ilustradores (Bahareh Akrami, Bee, Catel, Coco, Deloupy, Hamoun, Hippolyte, Joann Sfar, Lewis Trondheim, Mana Neyestani, Nicolas Wild, Paco Roca, Pascal Rabaté, Patricia Bolaños, Shabnam Adiban, Touka Neyestani e Winshluss). Marjane queria mostrar não apenas o que estava acontecendo no Irã, mas que seu país de origem não é representado pela teocracia religiosa.

Resenha: Mulher, vida, liberdade, de Marjane Satrapi (Org.)

É preciso um certo desconhecimento da história para comparar movimentos inspiradores e poderosos como o "Mulher, vida, liberdade" no Irã a explosões sociais repentinas. (...) Dizem que os mitos são os espelhos de uma nação. Alguns enaltecem seus guerreiros, outros seus sacerdotes. A mito-história iraniana está repleta de mulheres emancipadas e emancipadoras.

A história do Irã costuma ser lembrada apenas a partir da deposição do xá e da instalação da teocracia religiosa de aiatolá Khomeini, no final dos anos 1970. Isso está muito longe de milênios de história que o país possui. O quadrinho começa com a história de mulheres inspiradoras do passado como Tahmineh e a imperatriz Pourandokht, que enfrentaram inimigos, preconceitos e invasões.

Femme, Vie, Liberté (Mulher, vida, liberdade), o título original desta obra, é a tradução para o francês de Jin, Jîan, Azadî, o lema usado no movimento de independência curda que foi cantado e gritado pelas ruas das cidades iranianas após a morte de Amini. No mesmo dia do funeral de Mahsa, sua cidade natal explode em protestos. No Curdistão, vários grupos se formam e mulheres se recusam a deixar o centro da cidade de Sanandaj, enquanto gritam "Morte ao ditador". Os protestos continuaram nos dias seguintes, com mulheres tirando seus véus, queimando-os enquanto homens se juntas às suas fileiras, gritando palavras de ordem.

O véu é um símbolo de opressão para muitas mulheres no Irã, pois ele faz parte do projeto ideológico do regime, baseado na misoginia e no patriarcado. Além disso, tem a questão do fogo, elemento central da cultura persa e das festas zoroastrianas celebradas pelo povo iraniano mesmo depois da instauração do regime. O fogo é usado na literatura persa para expressas sentimentos profundos e verdadeiros, sendo um símbolo de luz contra a ignorância.

Por ter tantos ilustradores diferentes, o livro é uma riqueza de estilos, traços, cores e expressões. Cada ilustrador se encarregou de contar uma parte da história. São relatos de como os iranianos se organizam para protestar, como o regime atua para manter um sistema corrupto no lugar e até falando explicitamente dos filhos de ouro do regime, jovens oriundos de ricas famílias ligadas ao governo, que vivem uma vida ocidental de ostentação, enquanto mulheres como Mahsa apanhavam da polícia moral. O regime prende mulheres por causa do véu, enquanto as privilegiadas filhas dos oligarcas se bronzeiam de biquíni em resorts de férias.

O assassinato de Mahsa Amini desencadeou a primeira revolução feminista apoiada por homens na história.

Os capítulos têm tamanhos variados, alguns maiores, outros menores, dependendo do propósito. Mas há muito conteúdo, tanto da história passada e recente do Irã como de conteúdos tirados de redes sociais de pessoas que protestaram pelas ruas após a morte de Amini. Há também uma bela homenagem a todos aqueles, mulheres e homens, que perderam sua vida apenas por querem viver suas vidas sem a intervenção do regime. Uma delas é Sahar Khodayari, de 29 anos, presa em março de 2019 após se vestir de homem para tentar entrar em um estádio de futebol. Sahar tacou fogo no próprio corpo diante do Tribunal Revolucionário Islâmico de Teerã.

Outro assunto importante tratado pelos autores é a diáspora de muitos iranianos. Em busca de uma vida sem tantas restrições, muitos deixam seu país, aceitando viver no exílio, mas temendo pelos familiares e conhecidos que ficaram. É difícil para eles ter que acompanhar tudo o que aconteceu após a morte de Amini e de tantos outros, sabendo que estão em segurança, enquanto outros enfrentam o inferno pelas ruas. Mas os jovens resistem. Organizam festas, leem livros proibidos, ouvem músicas estrangeiras. Mesmo com todas as restrições educacionais às mulheres no Irã, elas são mais escolarizadas que os homens, mas também as que enfrentam maiores taxas de desemprego.

É um quadrinho triste, belo, informativo e muito importante para o momento que estamos vivendo. Há capítulos coloridos e em preto e branco, com um longo diálogo de Marjane e os especialistas convidados sobre o que virá depois. Algo vai mudar? A teocracia vai mesmo cair? A tradução foi de Julia da Rosa Simões e está ótima.

Obra e realidade
Mahsa "Jina" Amini tinha 22 anos quando foi presa pela polícia moral em Teerã, em 13 de setembro de 2022. Amini foi acusada de infringir o rígido código de vestimenta feminino, ao não usar corretamente o véu, deixando uma mecha de seu cabelo aparecer. Jina desmaiou logo em seguida e levada a um hospital, onde ficou em coma por dois dias e meio, com ferimentos na cabeça e respirando por aparelhos, antes de morrer.

O governo afirma que Jina morreu devido a uma doença, mas a família acredita que ela foi espancada na delegacia. Naquele dia, Jina passeava com a família pela cidade de Teerã, pois tinha ido se matricular no curso de biologia, quando foi parada pela polícia, resistiu à prisão e foi empurrada para dentro de um carro. Logo após sua morte, a família Amini passou a ser ameada e a receber avisos do governo para não falar com jornalistas.

Testemunhas dentro da delegacia dizem que Jina foi espancada pelos policiais, que fraturaram seu crânio e ainda demoraram para pedir por socorro. Seu enterro foi apressado para evitar especulações e até impediram a presença de sua família. Apesar de seu nome legal ser Mahsa, a família de Amini é curda, e a chamavam apenas por Jina. As leis iranianas não permitem que nomes não-persas sejam usados para registrar bebês.

Marjane Satrapi

Marjane Satrapi é uma romancista gráfica, ilustradora, cineasta e escritora franco-iraniana.

PONTOS POSITIVOS
Vários autores
Um Irã diferente
Homenagem
PONTOS NEGATIVOS
Preço


Título: Mulher, vida, liberdade
Título original: Femme, Vie, Liberté
Organizadora: Marjane Satrapi
Tradutora: Julia da Rosa Simões
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 272
Ano de lançamento: 1ª edição foi em 2010
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Mulher Vida Liberdade é uma afirmação político-cultural destina a todos os públicos, na esperança de quebrar preconceitos e de mostrar o país por outro viés. O Irã e boa parte de sua população não se sentem representadas pelo regime teocrático e querem mudanças. Mas são sufocados e silenciados por meio da violência, exatamente como fizeram com Mahsa Amini. Você precisa ler esse livro e ele precisa ser mais conhecido. Selo de Essencial mais do que merecido!

Até mais!

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Comentários

  1. Ponto Negativo: PREÇO! É duro ser professora e ter que fazer malabarismos para pagar contas e ainda ter acesso ao que vem sendo produzido sobre acontecimentos presentes e passados desse mundo.

    A primeira coisa que pensei quando vi o titulo da postagem foi: "Nossa! Marjane Satrapi! Quanto tempo que não vejo!" Fico feliz de ver ela de volta com uma HQ tão potente e triste por viver nesse mundo onde tantas de nós ainda sofrem tanto para desfrutar do direito a liberdade de ser e estar no mundo.

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