Resenha: Admirável novo mundo, de Bernardo Esteves

O processo de ocupação do continente americano é um tema que desperta o interesse de vários membros da comunidade científica e a curiosidade do público fã de ciência. Ainda é difícil bater o martelo diante da enormidade de evidências que mais complicam do que elucidam a história. Bernardo Esteves nos trouxe um livro essencial para entender em que pé está o estado da arte, pela perspectiva sul-americana, mas além disso, também nos traz os efeitos do colonialismo na ciência e como isto influenciou a visão de vários cientistas ao longo dos anos.

Parceria Momentum Saga e Companhia das Letras

O livro
A ocupação inicial do continente americano é uma das grandes questões em aberto da história humana. Seu apelo vem de uma dúvida essencial da condição humana: de onde viemos? Que ela esteja envolta num ambiente de intriga acadêmica marcada por rancor e ressentimento só acrescenta um tempero muito humano a uma das mais instigantes controvérsias da ciência contemporânea.

É justamente essa controvérsia que motivou a pesquisa de Bernardo. Existem evidências de ocupação humana com base em artefatos de 30 mil anos, mas a ciência tradicional se recusa a reconhecê-los. A Serra da Capivara é o sítio arqueológico mais importante do país. Em 1986, Niède Guidon publicou um artigo na respeitada revista Nature falando sobre as descobertas incríveis feitas no local, mas nem isso foi suficiente para convencer pesquisadores da Europa e dos Estados Unidos da validade dos artefatos. E a gente sabe o nome disso.

Resenha: Admirável novo mundo, de Bernardo Esteves

Os seres humanos chegaram ao continente americano pela Beríngia, a ponte de terra que conectava a Sibéria ao Alasca, onde hoje está o Estreito de Bering. Eles começaram a descer o continente, se espalhando pelas regiões e estabelecendo povoamentos. Por muito tempo, acreditou-se que os pioneiros eram os povos da cultura Clovis, surgiu há cerca de 13.200-12.900 anos, no final da última Idade do Gelo. Chama-se assim por causa dos artefatos encontrados perto da cidade americana de Clovis, no Novo México, nos Estados Unidos.

Por muito tempo, os povos de Clovis foram considerados os pioneiros, com a dispersão para outras regiões acontecendo de uma única origem. Mas a descoberta de artefatos em sítios mais velhos que Clovis, tanto na América do Norte quanto na própria América do Sul mudaram essa visão, aliados a estudos genéticos que indicam uma história muito diferente e dinâmica no continente. Isso parece resolver a questão, certo? Afinal, é assim que a ciência funciona. Ou deveria.

Infelizmente, muitos cientistas da Europa e dos Estados Unidos não aceitam as novas evidências. Eles se apegam à cultura Clovis e se recusam a deixar de lado o pioneirismo. A arqueologia norte-americana ainda dita as regras sobre o que é aceito pelo establishment científico ou não. Como comenta o próprio autor no livro, se os artefatos no Brasil, encontrados por Niède Guidon, tivessem sido encontrados no Alasca, não haveria qualquer discussão. Mas um país sul-americano, o "quintal" dos Estados Unidos, apresentando evidências tão importantes para uma questão nevrálgica da arqueologia, mexe com o brio de alguns arqueólogos.

Bernardo explica com muita competência e com uma narrativa envolvente em 22 capítulos não apenas os problemas da ciência, as discussões entre os especialistas e o imperialismo científico, mas também fala da evolução e dispersão humana pelo mundo e os sítios arqueológicos mais importantes do Brasil no que diz respeito à ocupação do continente. Logo no começo há um mapa com localização de sítios arqueológicos citados no texto.

Admito que antes de ler este livro, eu acreditava que havia uma certa concordância sobre a ocupação das Américas e a dispersão dos seres humanos por elas. Mas me vi surpresa diante da diversidade de sítios, artefatos e visões de mundo entre um e outro, que parecem apontar para diversas ondas em momentos distintos. Ao comparar sítios, arqueólogos descobriram artefatos tão diferentes que é impossível serem do mesmo agrupamento humano. E a ciência, como fica nessas situações? Por isso há tantas perguntas em aberto e tantos cenários sem solução, pois nem tudo segue um padrão óbvio.

O autor também fala dos dilemas éticos de se estudar a genética dos povos originários. Existem tabus e rituais que precisam ser considerados quando se planeja estudar a genética destes povos e a genética ainda que tenha suas limitações, pode ser a melhor maneira de rastrear os diversos pulsos de povoamento. Além disso, os povos originários foram vítimas de genocídio e boa parte da diversidade genética que poderia dar essas respostas pode ter se perdido para sempre. Dados de DNA antigo e moderno apontam cada vez mais para a presença de um componente genético modesto, porém significativo - chamado de "População Y" - nas linhagens indígenas, que revela um parentesco com os atuais aborígines da Austrália e da Melanésia.

O livro vem em capa comum e papel pólen natural. Conta com algumas imagens coloridas e mapas no miolo. Apesar do autor achar frustrante chegarmos ao final do livro sem respostas e certezas, achei a leitura fascinante, daquelas de abrir mentes. São tantas informações incríveis, aprendi tanto com ele! Gostaria muito de ter este livro na época em que ainda estava em faculdade e com certeza indicarei a leitura para meus colegas de história.

Obra e realidade
A galera da minha geração deve se lembrar das aulas de história que tivemos na escola. A história do Brasil, por exemplo, começa em 1500, com a chegada dos portugueses ao nosso litoral e estabelecendo sua colônia de exploração, escravidão e genocídio, cujos efeitos ainda sentimos 500 anos depois. Eu só fui ter uma ideia de como essa visão é preconceituosa e totalmente errada quando estava na faculdade e o próprio professor, lá nos idos de 2005, disse que havia muita coisa ainda a se descobrir e que a história da ocupação das Américas seria reescrita constantemente conforme novas pesquisas fossem feitas.

Fruto de dez anos de pesquisa, que incluiu mais de cem de entrevistas com 59 pessoas, entre elas representantes de povos indígenas e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, este livro traça mais do que a história sobre a origem de nossos antepassados, fala da ciência e as perguntas em aberto sobre a ocupação do continente. É um paradoxo perceber que hoje existem mais perguntas do que respostas se compararmos com a ciência de vinte anos atrás, onde parecia haver muito mais certezas. O que precisamos fazer é investir cada vez mais em ciência e em formação de pessoal para continuar pesquisas e fomentar mais descobertas.

Bernardo Esteves

Bernardo Esteves, é um jornalista brasileiro que atua principalmente na área de meio ambiente e ciência. É colaborador da Revista Piauí e coordena o podcast A Terra É Redonda.

PONTOS POSITIVOS
Bem escrito
Bem pesquisado
História das Américas
PONTOS NEGATIVOS

Preço

Título: Admirável novo mundo
Autor: Bernardo Esteves
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 504
Ano de lançamento: 2023
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Posso apontar que esta é uma das melhores leituras do ano! Não apenas é um livro muito bem escrito, como também o autor entrevistou pesquisadores das mais diversas áreas da ciência, além de falar com membros de povos indígenas, o que é mais do que justo, é obrigatório para o tema do livro. Leitura essencial e uma forte recomendação para você ler também!

Até mais!

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Comentários

  1. Eu estou nas andanças pelo sertão nestas férias e conheci a Serra da Capivara e o sítio arqueológico. É fascinante e as evidências da presença do homem em solo americano há mais de 50 mil anos estão presentes e documentadas tanto no parque quanto no museu do homem americano. Niède Guidon é uma desbravadora e lutadora incansável, pois sempre que os americanos refutavam suas descobertas, ela aparecia com outras evidências ainda mais acachapantes. Impossível sair da Serra da Capivara sem querer saber mais sobre a fascinante e ainda misteriosa história e já deu vontade de ler este livro.

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