H. P. Lovecraft (1890-1937) foi um dos escritores mais influentes do século XX, tornando-se conhecido por seu horror cósmico. De acordo com o biógrafo de Lovecraft, S. T. Joshi, o autor era fascinado pela Antártica desde muito jovem. Muito desse fascínio é responsável por seu famoso livro Nas Montanhas da Loucura, escrito em 1931. Ele foi curiosamente rejeitado pela revista Weird Tales e enfim foi publicado pela Astounding Stories em forma seriada em 1936. E apesar de ter saído da escola sem se formar, Lovecraft mostra em seus escritos um amplo conhecimento de arqueologia, geologia e paleontologia.
A Antártica é o último dos continentes da Terra, um local de natureza selvagem, com clima severo, sem população nativa. É bem provável que os povos de regiões próximas ao continente tenham sido os primeiros a explorá-lo: os povos Aush da Terra do Fogo, por exemplo, falam sobre o "país do gelo" e um chefe māori de nome Ui-Te-Rangiora teria chegado na região em 650 d.C., mas não há vestígios dessas presenças no continente.
Sendo o mais frio e seco continente na Terra, a Antártica é o maior deserto do planeta. Mas se olharmos para a rica geologia e paleontologia sob o manto de gelo, descobrimos que ele já foi verdejante, cheio de vida animal e vegetal. Ao olhar para a história do planeta, foi apenas em períodos muito recentes que a placa antártica ganhou sua cobertura de gelo permanente. O que mais poderia estar oculto sob ele?
Esse mistério sob o último continente da Terra deve ter fermentado na cabeça de Lovecraft por um bom tempo e na época em que foi escrito o continente ainda estava testemunhando suas primeiras expedições. Nas Montanhas da Loucura é contado da perspectiva de William Dyer, um geólogo da Universidade Miskatonic que voa para uma região inexplorada da Antártica. Ele está acompanhado pelo professor Lake, um biólogo; professor Pabodie, um engenheiro; e alguns alunos de pós-graduação. O enredo básico é a descoberta dos restos congelados de entidades bizarras do espaço profundo e seus “escravos” ainda mais aterrorizantes: os shoggoths. A história poderia ser dividida em duas partes. A primeira é particularmente rica, detalhada e mostra um conhecimento científico impressionante.
Um evento que influenciou muito a escrita desse livro foi o primeiro vôo de Robert Byrd sobre o Pólo Sul em 1928. Outras influências bem nítidas são as pinturas do Himalaia de Nicholas Roerich, mencionadas várias vezes ao longo da leitura, a teoria da deriva continental de Alfred Wegener e os avanços paleontológicos de sua época, como a descoberta de arqueociatídeos encontrados em rochas datadas do Pré-Cambriano em 1920. Arqueociatídeos, criaturas marihas primitivas, surgiram na explosão cambriana (há cerca de 590 milhões de anos), evento de maior importância na biodiversidade terrestre marcado pelo aparecimento de quase todos os filos descritos. O grupo foi extinto há cerca de 540 milhões de anos.
Por volta dessa época, a Antártica estava na região do equador e sua placa começou a descer, ver sua flora e fauna florescerem, testemunhando o surgimento de grandes répteis, como os dinossauros. Mesmo quando o supercontinente da Pangeia começou a se dividir e a Antártica começou a rumar para sua posição atual, ela era um oásis verdejante, tropical, perigoso e irresistível para a imaginação de qualquer um.
Os primeiros fósseis, fragmentos de madeira petrificada, descritos da Antártica foram coletados em 1892-93 na Ilha Seymour por membros da Expedição Antártica Norueguesa liderada por Carl Anton Larsen (a maioria dos fósseis foi trocada posteriormente pelos marinheiros por tabaco, mas Larsen levou seus espécimes para Universidade de Oslo). Um dos primeiros geólogos a coletar fósseis na Antártica foi o geólogo sueco Otto Nordenskjöld em 1902-03. Ele e sua equipe descobriram fósseis de plantas jurássicas, conchas e ossos de pinguins gigantes (que também têm uma participação especial no livro de Lovecraft).
Fóssil de uma folha de Glossopteris, encontrado nas Montanhas Príncipe Charles, na Antártica. Entre 260 a 270 milhões de anos de idade, as Glossopteris foram importantes para o estabelecimento da teoria da deriva continental de Alfred Wegener. |
Em 1914, o paleontólogo britânico Albert Charles Seward descreveu as plantas fósseis coletadas pelo grupo de Robert Falcon Scott, explorador que liderou duas expedições à Antártica, como sendo Glossopteris e Vertebraria, duas espécies extintas de plantas distribuídas em quase todo o mundo. Essas descrições foram posteriormente usadas pelo geofísico alemão Alfred Wegener como evidência de que a Antártica já foi conectada a todos os outros continentes. Lovecraft aparentemente era fascinado pela teoria da deriva continental, proposta por Wegener na década de 1920, pois no livro ele descreveu a descoberta de um antigo mapa topográfico de origem desconhecida em uma cidade morta, que mostrava o movimento lento dos continentes na superfície da Terra.
Com base nos fósseis de plantas, Nordenskjöld também foi um dos primeiros pesquisadores a propor que a Antártica no passado experimentou um clima muito mais quente e foi coberta por florestas de samambaias e outras plantas tropicais. Lovecraft evocará esse passado há muito perdido em sua história pela descoberta inesperada de uma caverna que atuou como armadilha de sedimentos por milhões de anos:
Seu teto e piso eram abundantemente equipados com grandes estalactites e estalagmites, algumas delas em forma de coluna; mas o mais importante de tudo era o vasto depósito de conchas e ossos que em alguns lugares quase obstruíam a passagem. Arrastada de selvas desconhecidas formadas por fungos e samambaias mesozoicas, florestas de cicadófitas do Terciário, palmeiras e angiospermas primitivas, essa mistura óssea continha ainda representantes dos períodos Cretáceo e Eoceno, além de outras espécies animais que nem mesmo o maior dos paleontólogos poderia contar ou classificar em um ano. Moluscos, carapaças de crustáceos, peixes, anfíbios, répteis, pássaros e mamíferos primitivos - grandes e pequenos, conhecidos ou desconhecidos.
Nas Montanhas da Loucura
Para Lovecraft, a geologia e a descrição detalhada dos fósseis descobertos é parte essencial para apresentar a ideia de tempos profundos, principalmente o pré-cambriano quando, segundo o conhecimento de sua época, não existia vida na Terra. No entanto, a expedição de Dyer descobriu em rochas datadas deste período antigo os vestígios de criaturas altamente evoluídas, referidas apenas como os Antigos. Eles são muito superiores em sua cultura, tecnologia e habilidades à nossa civilização, o mais importante é que são extremamente mais velhos que os humanos e o livro de Lovecraft termina com um aviso: em comparação com a vastidão quase inimaginável da idade da Terra (e dessas criaturas), deveríamos ser mais humildes (e termos muito medo de lidar com o desconhecido).
Desde que Lovecraft escreveu seu livro, várias missões à Antártica melhoraram nosso conhecimento sobre o continente branco. A massa de terra do continente é composta por dois grandes blocos geologicamente distintos separados pelas Montanhas Transantárticas, uma cordilheira de 2800 km de extensão com picos de 4 mil metros de altura (as imaginárias Montanhas da Loucura de Lovecraft tinham mais que o dobro dessa altura). A Antártica Oriental é bastante antiga, com províncias pré-cambrianas, enquanto a Antártica Ocidental é um mosaico de cinco blocos menores cobertos pelo manto de gelo, cujas rochas estão expostas na Península Antártica. Os fósseis dessa região serviram de inspiração para algumas descrições feitas por Lovecraft.
Uma sugestão quando for ler ou reler Nas Montanhas da Loucura: procure os termos utilizados por Lovecraft na internet. Alguns termos que ele usa, como Terciário, caíram em desuso, mas em outros aspectos o livro é bastante preciso e segue a ciência antártica de perto. Tem coragem de encarar uma jornada pelo continente gelado??
Até mais! 🐚
Nas Montanhas da Loucura está nessa coletânea, em duas versões e na graphic novel:
❥ H.P. Lovecraft - Medo Clássico - Volume 1 - Cosmic Edition
❥ H.P. Lovecraft - Medo Clássico - Volume 1 - Miskatonic Edition
❥ Nas Montanhas da Loucura V. 1, de H.P. Lovecraft e François Baranger
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