Resenha: Enquanto houver limoeiros, de Zoulfa Katouh

Sabe aquele livro que parte seu coração em mil pedaços? É esse. O título me atraiu, devo confessar. Achei interessante e quando li a sinopse, imaginei que seria um livro forte, impactante, que me deixaria destruída no final da leitura. O cenário aqui é a Síria. Mas não a Síria histórica e sim a Síria destruída pela guerra.

O livro
Salama Kassab é uma jovem síria, moradora da cidade de Homs. Estudiosa, inteligente, Salama é como qualquer jovem de qualquer lugar do mundo, que gosta de sair com as amigas para comer doces na padaria local, que curte filmes, músicas, séries, que ama a família. Seu sonho é ser farmacêutica e ainda bem jovem ingressa na universidade para seguir seu sonho. Ela sabe de cabeça as propriedades medicinais de várias plantas e costumava fazer seus próprios preparos em casa, usando a cunhada, Layla, como cobaia. As duas, aliás, são muito próximas e praticamente cresceram juntas.

Resenha: Enquanto houver limoeiros, de Zoulfa Katouh

Mas a vida de Salama sofre um grande revés quando a Revolução Síria eclode após a Primavera Árabe sacudir vários países, em 2011. Depois de anos de uma violenta ditadura, tudo o que Salama e vários outros cidadãos sírios querem é liberdade, mas ela tem um custo. E os bombardeios sobre Homs fazem Salama perder praticamente tudo, seu lar, seus pais, seu irmão. Apenas Salama e Layla vivem em uma casa vazia e triste. A própria Salama é uma sobrevivente depois de um bombardeio. Sendo estudante de farmácia, ela acaba recrutada para trabalhar no hospital de Homs, ajudando feridos e informalmente trabalhando como cirurgiã.

Desde o começo do livro me apeguei a Salama. Me apeguei à sua luta por seu país e pelo seu desejo de sobreviver, temendo por seu futuro conforme a leitura progredia. Narrado por ela, o livro a acompanha na sua luta diária, uma luta que divide seu coração. Ela prometera a seu irmão, preso pelo Exército Sírio, de que manteria Layla viva. Mas Salama também ama seu país, sua rica história, seu passado glorioso e não quer desistir dele. É Khawf, uma entidade que a acompanha a cada movimento no esforço de mantê-la segura, que finalmente a convence a procurar uma maneira de sair da Síria. E a única maneira é pelo mar.

Será que todas as crianças de seis anos sabem o que é a morte? Ou só as crianças da guerra?

É muito difícil passar a leitura ao lado de Salama, mas é impossível parar. Katouh não vai poupar detalhes na hora de descrever os bombardeios, os ferimentos, o hospital super lotado e a falta de medicamentos para atendê-los. Salama se tornou uma cirurgiã da noite para o dia, tendo que assistir ao horror se desenrolar diante de seus olhos e ainda se sentir impotente diante do massacre. Ela perde peso devido à escassez de comida, mal dorme por causa da constante presença de Khawf, que lhe mostra os cenários futuros de suas escolhas, e ainda precisa se preocupar com a gravidez avançada de Layla.

Como alguém pode crescer em um lugar onde uma pessoa não pode nem andar na rua sem ter medo dos atiradores nos prédios destruídos por bombas? Como manter os sonhos, como pensar em um futuro enquanto crianças destroçadas dão entrada a todo momento? Salama passa por esse tipo de situação, agarrando-se às lembranças do passado para poder sobreviver. E depois de conhecer Kenan, um jovem sírio cuja irmã chegou ferida e Salama depois a salvou, a jovem farmacêutica começa a lamentar por um futuro que ela gostaria de ter tido com o rapaz.

Katouh descreve com riqueza a destruição de sua cidade, de seu país e sua revolta com as nações estrangeiras. Crianças morrem no hospital pela falta de medicamentos básicos, amputações são feitas sem anestésico. Então como o mundo pode deixar aquilo acontecer? Por que ninguém faz nada para ajudar a Síria seus cidadãos acuados? Salama se faz essas perguntas constantemente, o que acaba ficando na nossa cabeça. Onde estão as notícias sobre a Síria no noticiário, nos portais de notícia? Por que não se fala mais dos conflitos?

Terminei a leitura já faz vários dias e o enredo ainda está comigo, ainda está na minha cabeça. Katouh escreveu um livro para jovens adultos que lida com alguns dos mesmos temas de sempre, como a maturidade, os sonhos, a paquera, o medo do que o futuro pode trazer, mas o cenário não é o que a maioria das pessoas espera por ser em meio a uma guerra, com descrições tão vívidas sobre os feridos e a destruição. Mesmo no meio de uma guerra é possível sonhar? Salama certamente tem esse direito, assim como todos os sírios.

Devo dizer que uma revelação perto do final partiu meu coração em mil pedaços. Nem por um minuto desconfiei do que estava acontecendo e quando Katouh nos revela a verdade, estranhamente, tudo faz sentido e saber disso faz doer ainda mais. Ao mesmo tempo, entendo porque aquilo aconteceu e como Salama usou esse evento para se manter viva e trabalhando. Ninguém pode culpá-la por isso, pois é a mente cheia de traumas tentando fazer algum sentido deles, se blindando para manter a pessoa viva e funcional. Foi cruel, mas para Salama funcionou para mantê-la viva.

Eu sou síria. Esta é a minha terra e, assim como os limoeiros que crescem aqui há séculos, o sangue derramado não vai nos parar.

O livro está muito bem traduzido por Laura Folgueira. Encontrei alguns errinhos de revisão pelo caminho que podem atrapalhar um pouco a leitura.

Obra e realidade
O limão é um elemento central da culinária árabe. Ainda que não seja nativo da região, ele é um dos ingredientes principais nas culinárias da Síria, Jordânia e Líbano. É comum nas casas árabes que os limões abundem de cestos e fruteiras, já que ele é essencial em qualquer receita. A presença de um limoeiro é a certeza de que a vida continuará, que vai seguir em frente, apesar de todas as dificuldades.

Katouh queria escrever uma história ficcional em meio a um cenário real de maneira a poder aproximá-las das pessoas. Sabemos que a ficção nos torna mais empáticos, então a saída para conscientizar as pessoas sobre o que está acontecendo na Síria foi criar personagens que falassem sobre o tema com o público, principalmente o jovem. A autora começou a escrever o livro enquanto estava no mestrado, entre uma aula e outra, usando a própria história como inspiração. Tornou-se a primeira autora de raízes sírias a ser publicada pela editora Bloomsbury nos Estados Unidos e Reino Unido.

Katouh também espera mudar a mentalidade das pessoas sobre os refugiados. Ninguém escolhe livremente subir em um barco precário e se lançar ao mar com nada além de uma mochila e a roupa do corpo, podendo morrer no meio do processo. Ninguém quer deixa sua terra ancestral e tentar a sorte em um país estrangeiro que pode nem mesmo recebê-lo. Se a realidade não amolece o coração das pessoas, talvez uma personagem ficcional como Salama possa.

Zoulfa Katouh

Zoulfa Katouh é uma escritora canadense, descendente de sírios, que atualmente mora na Suíça. Bacharel em farmácia, cursa mestrado em ciências farmacêuticas. É fluente em inglês, árabe e alemão. Leitora voraz desde pequena, é fã de Estúdio Ghibli, assim como Salama.

PONTOS POSITIVOS
Salama
Bem escrito
História atual
PONTOS NEGATIVOS

Violência


Título: Enquanto houver limoeiros
Título original em inglês: As Long as the Lemon Trees Grow
Autora: Zoulfa Katouh
Tradutora: Laura Folgueira
Editora: Verus
Páginas: 432
Ano de lançamento: 2023
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Que leitura! Difícil, emocionante, esperançosa. Torci tanto por Salama, sofri tanto com ela... Não vou te dizer que o livro é fácil, porque não é. Nem tem como ser fácil diante de todas as dificuldades de seus personagens. Por isso mesmo que ele precisa ser lido e discutido e indicado para todo mundo. Cinco aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!


Até mais! 🍋

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