Desde que li Medicina dos Horrores, sobre o trabalho pioneiro do cirurgião britânico Joseph Lister, que virei fã do trabalho de Lindsey Fitzharris. Quando soube deste lançamento, corri atrás para ler o quanto antes. Aqui voltamos para as horríveis batalhas da Primeira Guerra Mundial e a carnificina causada por estilhaços, fogo e munições nos rostos de milhares de soldados. E como um cirurgião revolucionou a medicina para tentar ajudá-los.
O livro
Antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-18), a maioria dos ferimentos de guerra era causada por armas de fogo de pequeno calibre ou cortes causados por espadas e adagas. Lesões faciais eram muitas vezes de pouca preocupação para os sobreviventes que eram considerados sortudos o suficiente para escapar com vida. Em alguns casos, era um sinal de valentia e bravura e homens jovens buscavam barbeiros para causar lesões em seus rostos para exibi-las como marcas de honra.Porém, a Primeira Guerra trouxe consigo horrores que guerras anteriores não viram, como os conflitos mecanizados e a artilharia pesada, metralhadoras e gás que criaram lesões numa escala nunca antes vista. A maneira como os homens se amontoavam nas trincheiras e erguiam as cabeças para olhar pelo campo inimigo os expunham a atiradores de elite do outro lado, o que aumentou significativamente as lesões faciais em soldados. Projéteis cheios de estilhaços foram projetados para causar o máximo de dano. Pedaços de metal superaquecido podiam arrancar mandíbulas, narizes e olhos em questão de segundos.
A partir do momento que a primeira metralhadora foi disparada na Frente Ocidental, uma coisa ficou evidente: a tecnologia militar da Europa havia superado suas capacidades médicas. As balas rasgavam o ar a velocidades terríveis. Projéteis e bombas de morteiro explodiam com tanta força que arremessavam homens próximos ao campo de batalha como se fossem bonecas de pano. A municação contendo magnésio pegava fogo quando alojada na pele. E uma nova ameaça, na forma de estilhaços quentes, muitas vezes cobertos de lama repleta de bactérias, causava ferimentos pavorosos nas vítimas.
Diante da crua realidade das batalhas, os médicos pouco podiam fazer pelos pacientes com lesões faciais tão sérias. Muitas vezes elas eram apenas suturadas sem levar em conta a quantidade de carne que havia sido perdida o que levava a desfigurações difíceis de tratar conforme cicatrizavam. Lesões na mandíbula podiam deixar os homens incapazes de comer ou beber. Outros tiveram que ser cuidados sentados para evitar que sufocassem quando se deitassem. Alguns ficaram cegos ou ficaram com um buraco no lugar do nariz.
Foram cirurgiões como Harold Gillies, e dentistas que começaram a perceber a carência de profissionais que atendessem a casos tão sérios. Gillies era natural da Nova Zelândia, tendo estudado medicina na Inglaterra. Alocado na França em 1915, ele testemunhou em primeira mão os horrores das lesões faciais e ao retornar para a Inglaterra, abriu uma ala especial no hospital militar de Aldershot, em Cambridge na esperança de ajudá-los.
Havia um tabu corrente na época (que não caiu totalmente) sobre irregularidades faciais. Elas eram geralmente associadas a doenças como hanseníase ou sífilis, até mesmo sendo atribuídos a castigos divinos por perversidade ou pecado. Tanto existia esse temor causado por uma lesão na face que ela era vista como algo pior que a morte por muitos soldados e nas Guerras Napoleônicas, soldados com esse tipo de ferimento, eram mortos pelos colegas, que diziam que estavam poupando os companheiros de mais sofrimento.
Assim Gillies sabia que tratar as lesões faciais não era apenas uma questão de saúde, mas também mental. Não foram poucos os casos de homens que perderam suas noivas e namoradas depois que elas souberam o tipo de lesões que os soldados estavam tratando no hospital militar. O rosto é, geralmente, a primeira coisa que nós notamos em uma pessoa. Usamos toda uma gama de expressões para passar mensagens para outras pessoas sem falar uma única palavra. Perder todo esse leque de possibilidades de comunicação é algo terrível para qualquer pessoa.
Gillies é considerado o pai da cirurgia plástica e defendeu seu uso até mesmo para casos cosméticos numa época em que a prática da cirurgia plástica era vida como algo qualquer, menos medicina. Sem livros didáticos para se orientar, ele teve que criar técnicas que ainda hoje são utilizadas. A demanda brutal causada pela Grande Guerra também mostrou que havia muita coisa na medicina que precisaria mudar para ajudar tantas vítimas. Cirurgiões, dentistas, desenhistas, pintores e artistas plásticos contribuíram para restaurar o rosto e camuflar feridas que causavam estresse físico e psicológico.
Lindsey admite no começo do livro que a obra não visava contar toda a história da cirurgia plástica, nem pretendia ser uma biografia completa sobre Gillies. Mas acredito que ela conseguiu alcançar o público leigo com um tema muito humano e que envolveu tanta gente na esperança de ajudar homens desfigurados, isolados da sociedade. É um livro introdutório muito bem escrito que conta como a área da cirurgia plástica trouxe conforto e o rosto de volta de milhares de pessoas. Há casos de pacientes de Gillies de anos depois da guerra, que o procuravam por indicações de veteranos.
Antes do fim da guerra, 280 mil homens da França, da Alemanha e da Grã-Bretanha tiveram algum tipo de trauma na face.
Li o ebook, não o livro físico, mas foi uma leitura agradável, apesar do tema sensível e das descrições vívidas de ferimentos e reconstruções. Indico o livro para aquelas que gostam da história da medicina, que são naturalmente curiosas, porque sei que o tema pode e vai incomodar as mais sensíveis. A tradução de Paula Diniz está excelente e não há problemas de revisão ou diagramação. A leitura fluiu muito bem, mesmo quando a autora fez descrições horríveis ou usou termos médicos.
Obra e realidade
Após a guerra, Gillies montou um consultório particular onde realizou mais cirurgias pioneiras, incluindo, em 1949, a primeira redesignação de gênero de sexo feminino para masculino. Gillies atendia pacientes que não tinham dinheiro para ajudá-los e às vezes tomava calote por causa disso. Muita gente pode pensar que a cirurgia plástica é uma demanda moderna, mas já na época de Gillies mulheres o procuravam para modificar narizes e outras feições que julgassem imperfeitas.Para ele, o desconforto causado por uma lesão, má formação ou uma feição estética era algo real e que devia ser levado a sério pela comunidade médica. Seu desejo de restaurar a aparência, bem como a funcionalidade de seus pacientes, foi revolucionário para a época. Pela primeira vez, os pacientes podiam escolher o nariz ou a mandíbula que seus médicos construiriam para eles.
Lindsey Fitzharris é uma escritora e historiadora da medicina norte-americana. Morando no Reino Unido com o marido e dois gatos, é criadora do blog The Chirurgeon's Apprentice e da série de vídeos Under the Knife. É doutora em história da ciência de medicina pela Universidade Oxford e escreveu para vários portais como o The Guardian e o The Lancet.
PONTOS POSITIVOS
Bem pesquisado
Bem escrito
História da cirurgia plástica
PONTOS NEGATIVOS
Pode ser nojentinho
Introdutório
Bem pesquisado
Bem escrito
História da cirurgia plástica
PONTOS NEGATIVOS
Pode ser nojentinho
Introdutório
Avaliação do MS?
Este não é um livro para os fracos. Relatos meticulosamente claros e detalhados de ferimentos horríveis e operações extenuantes são complementados por retratos do artista de guerra Henry Tonks, que retratou pacientes antes e depois de suas reconstruções. Apesar de seu tema angustiante, Lindsey Fitzharris apresenta uma história intensamente comovente e agradável sobre um notável pioneiro da medicina e os homens que ele ajudou. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!Até mais! 🏳️
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