A liberdade feminina em Chocolate (2000)

Chocolate é um filme delicioso, se me permite o trocadilho. Além de ter como um dos personagens principais essa iguaria derivada do cacau, é também um filme que engana a expectadora desavisada. Olhando para o pôster do filme, onde vemos Juliette Binoche oferecendo um bombom na boca de Johnny Depp, somos levadas a crer que o longa fala de uma doce e quente história de amor. É um longa doce e quente, mas não de maneira amorosa. O chocolate acaba sendo um vetor que nos leva a discutir a liberdade feminina frente à opressão de uma pequena vila patriarcal, cinza e infeliz.

A liberdade feminina em Chocolate (2000)

Baseado no livro Chocolat, de Joanne Harris (1999), o longa segue de perto várias partes do livro, ainda que tome algumas liberdades criativas. Mas o enredo básico é: uma jovem mãe solo, chamada Vianne Rocher (Juliette Binoche), chega a uma pacata vila francesa com sua filha de seis anos, Anouk (Victoire Thivisol). Ela abre uma chocolateria bem frente à igreja local, em 1959. Aos poucos, com certa desconfiança e muita culpa interna, os moradores locais passam a frequentar o local e com uma combinação de simpatia, subversão de valores e um pouquinho de magia, Vienne consegue conquistar os locais, até mesmo o famigerado vilão, Paul de Reynaud (Alfred Molina).

Se tirarmos o romance sem sal de Vianne com Roux (Johnny Depp), o longa ainda funciona muito bem. Não demora muito para que Vianne e Anouk percebam que se estabeleceram em uma comunidade religiosa patriarcal estrita. A figura mais influente e poderosa é o prefeito, Paul de Reynaud, que exerce seu controle sobre o povo por meio de sua influência na igreja, onde escreve os sermões do jovem padre de maneira a servir como a bússola moral da pequena vila.

Reynaud entra em conflito com a exuberante Vianne logo de cara, percebendo que ela não é o tipo de pessoa que vai se dobrar às regras que ele tanto valoriza. Ela é independente, jovial, alegre e abre sua chocolateria bem no meio da Quaresma, época em que se pratica jejum, abstinência e abnegação. O choque entre os dois lados é inevitável e Reynaud manda recados à comunidade para evitar o local, enquanto boatos são espalhados sobre Vianne e sua filha.

Para Katha Pollitt, a religião é o livro de regras ‘original’ do patriarcado. De fato, se o patriarcado é a norma social, é porque tem sua legitimidade a partir da religião, o livro de regras mais importante referente ao que fazer e o que não fazer em qualquer comunidade. Quase todas as religiões propagam a ideia da superioridade masculina. Eles pintam as mulheres como física, mental, emocional e sexualmente inferiores aos homens. Assim, quando Reynaud bate de frente com Vianne, é por considerar essa mulher uma ameaça à sua ordem social e política na vila.

Ao invés de se acovardar e fugir diante da pressão do prefeito, Vianne acaba criando laços com a comunidade. Sua influência ajuda a reparar vários relacionamentos familiares desgastados e feridos pelas regras sufocantes da ortodoxia. A vila está parada no tempo, doente e embrutecida. Em alguns momentos, Vianne é o único ponto de cor na aglomeração medieval de casas e lojinhas. Há um laço de amizade muito importante no enredo, com Josephine (Lena Olin).

Josephine é conhecida como a "louca da cidade". Casada com o dono do café local, Serge (Peter Stormare), um homem abusivo e violento, Josephine é vista como louca, a aberração do vilarejo, aquela que não consegue ou não quer se encaixar. Ela rouba da loja, mas Vianne não a confronta – ela a trata com gentileza e a aceita como ela é. Mesmo advertida para não se aproximar, Vianne acolhe Josephine com bondade e uma xícara de chocolate quente cremoso. Quando Josephine chega no meio da noite batendo na porta da chocolateria de Vianne, com uma mala na mão e um corte na testa, fica claro que a mulher não é louca, mas sofre os sintomas mentais de abuso doméstico de longa data.

Josephine aprende a lidar com chocolate na loja da Vianne
Josephine aprende a lidar com chocolate na loja da Vianne

Enquanto Reynaud diz que Josephine é obrigada pelo “sacramento do casamento” a ficar e honrar seu marido e planeja fazê-la voltar para seu agressor, a principal preocupação do marido abusivo é que a cidade ria dele porque sua esposa o deixou. Apenas Vianne a acolhe, a protege e lhe dá um ofício, um propósito, um norte. Josephine é um exemplo de mulher que desafia o patriarcado e percebe que é muito mais do que sua capacidade de cozinhar, limpar e ser mãe.

Vianne também personifica o respeito, pois não permite que as opiniões das pessoas sobre ela diminuam seu respeito próprio e, da mesma forma, respeita e está aberta às opiniões de outras pessoas. Por exemplo, quando Anouk chega da escola chorando sobre os boatos que estão sendo espalhados sobre sua mãe e perguntando por que eles não vão à igreja como as outras famílias, Vianne responde: “Bem, você pode se quiser, mas não quer dizer que as coisas serão mais fáceis.” Ela evidentemente respeita a opinião dos outros e até incentiva a filha a ter a sua. Ainda assim, se recusa a deixar que a dela seja comprometida pela misoginia. Em vez de se conformar com o código de vestimenta tácito da cidade para as mulheres, ela continua a se vestir como bem quer. É ridicularizada por usar vermelho em vez de preto e cinza e por usar decotes à mostra. Sua filha grita: “Por que você não pode usar sapatos pretos como as outras mães?” Vianne apenas suspira. Nas cenas seguintes, ela é vista usando seus saltos altos vermelhos e aveludados.

Talvez o ápice do filme seja quando Vianne decide organizar uma celebração simbólica da fertilidade para o domingo de Páscoa. O feriado cristão da Páscoa tem suas raízes na celebração pagã de Ostara, uma recepção do equinócio da primavera e celebração da fertilidade no hemisfério norte (no hemisfério sul o equinócio da primavera é em 21 de setembro). Reynaud então prepara um sermão de Páscoa sobre a austeridade, sobre o sacrifício, ele mesmo preso em uma lógica fria de abnegação e negação de emoções e prazeres.

As antigas religiões pagãs quase sempre adoravam divindades masculinas e femininas. A cozinha da chocolateria está agitada, cheia de mulheres coradas e sorridentes trabalhando com chocolate, criando quitutes e maravilhas. Vianne então esculpe uma figura feminina em chocolate para simbolizar a deusa da fertilidade e a coloca na vitrine da loja. Eis que no meio da noite, e também no meio de uma crise de fé, Reynaud invade a chocolateria um dia antes da Páscoa, e corta a cabeça da deusa.

O que acontece a seguir é fabuloso: Reynaud se rende ao chocolate e se empanturra, rindo e se lambuzando, feliz e liberto das amarras que ele mesmo criou. Em lágrimas, seja por arrependimento, por estar farto, por tristeza, Reynaud era o último bastião de resistência à docilidade de Vianne. Exausto por tanto se esforçar, por tanto se manter sob controle, ele adormece em meio ao aroma doce do chocolate.

Alfred Molina é o prefeito Reynaud

É interessante notar que o prefeito, defensor daquele sistema tão restritivo, também sofre com o sistema patriarcal que promove. Ao longo do filme, ele luta para aceitar que sua esposa o deixou. Ele diz aos habitantes da cidade que ela está de férias em Veneza, mas com o passar dos meses fica cada vez mais claro que ela não vai voltar. Ele se sente emasculado e com medo de mostrar suas emoções. Quando é encontrado por Vianne, deitado em uma pilha de chocolate em sua vitrine depois de chorar até dormir, ela mostra compaixão por ele, e sua necessidade de atender às expectativas patriarcais do que significa ser “viril” é abandonada quando ele aceita que lhe é permitido ser vulnerável e triste.

Vianne e Anouk viajam com o vento, assim como Vianne fazia com sua mãe. Destinada a se mover com o vento norte, dispensando remédios e nunca se estabelecendo. Vianne carrega as cinzas da mãe aonde quer que vá e parece amar seu estilo de vida itinerante. Vianne parece livre, mas é motivada a seguir em frente, mesmo sabendo que isso tem um efeito negativo em Anouk. Da mesma maneira que Reynaud é oprimido pela história de sua família, Vianne é oprimida pela memória de sua mãe e pela vida que levou ao lado dela – é tudo o que ela sabe. Ela está tão presa à tradição quanto Reynaud e as pessoas da vila.

Quando Vianne ouve sons vindos de sua cozinha, numa manhã em que tenta forçar Anouk a se mudar novamente, ela encontra suas amigas fazendo chocolates. Josephine juntou algumas moradoras para convencê-la a ficar. Ela, a forasteira, a pária, era agora parte da comunidade e não precisava mais ir embora.

Chocolate, no fim, destaca a diferença entre a bondade imposta de fora – ser bom fazendo o que lhe mandam – e a bondade que vem de dentro. A verdadeira bondade é alinhar-se com o que há de bom dentro de você: o amor e a compaixão, sua verdadeira natureza. Isso é algo que os habitantes da vila aprendem com Vianne, enquanto Vianne aprende a se libertar e a seguir seu próprio caminho.

Chocolate está no catálogo da Apple TV!

Até mais! 🍫

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Comentários

  1. Ahh, esse texto me deu uma nostalgia danada! Assisti o filme, mais de uma vez, quando era ainda criança, adolescente, e sempre tinha uma memória afetiva de carinho muito forte por ele, mas não recordava de detalhes da trama. Com certeza vou revisitar!

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