Resenha: O Livro dos Anseios, de Sue Monk Kidd

É difícil colocar em palavras as emoções que este livro evoca. É um enredo ficcional que se passa dois mil anos atrás, mas que ressoa em cada mulher, porque muitas coisas ainda não mudaram. Kidd imaginou uma esposa fictícia para Jesus, chamada Ana, e contou sua história em uma época em que os papéis relegados às mulheres eram poucos, carregados de restrições e preconceito. Mas Ana tem voz e quer ser ouvida.

O livro
Ana nasceu em uma família rica de Séforis que, nos tempos de Herodes, o Grande, foi uma importante cidade e o centro administrativo da Galileia. O pai de Ana é o chefe dos escribas do palácio de Herodes. Mas esta não é uma jovem comum. Ana ama as letras, ama o conhecimento. De tanto ouvir suas súplicas, seu pai contratou tutor, lhe trouxe papiro, cálamos, coisas que não eram acessíveis às mulheres da época. Mesmo a mãe de Ana não sabe ler.

Resenha: O Livro dos Anseios, de Sue Monk Kidd

Até aquele momento, eu acreditava que era apenas peculiar — uma aberração da natureza. Uma desajustada. Uma maldição. Já fazia muito que eu sabia ler e escrever, e possuía uma habilidade incomum de transformar palavras em histórias, de decifrar idiomas e textos, de compreender significados ocultos, de manter ideias opostas na cabeça sem que houvesse conflito (...) Uma criança tão inadequada quanto eu precisava ser explicada.

Escondendo da mãe que já tinha se tornado mulher, Ana prosseguia com seus estudos, enchendo papiros sobre as mulheres da Bíblia, sobre o que via e ouvia. Suas única companhias eram seu irmão Judas (sim, ele), e sua tia, irmã de seu pai, Yalta, uma das personagens mais interessantes do livro e que acaba assumindo um papel materno na vida de Ana. Yalta veio exilada de Alexandria, o lar do conhecimento do mundo mediterrâneo. Até que um dia seu mundo muda drasticamente e acompanhei com muita agonia esse capítulo da vida de Ana, pois ela acaba sendo prometida para um homem bem mais velho, um homem cruel que prometeu benesses ao pai de Ana no contrato de casamento. Os dias de Ana são passados em agonia a partir daí.

Seu caminho se cruza com Jesus e ela agora sonha com o rosto gentil, o sorriso fácil, os olhos calorosos daquele jovem. Os encontros esporádicos que têm com ele sempre são repletos de conversas edificantes, sinceridade e interesses sobre a política da região, dominada pelo Império Romano, e pela espera da chegada do reino de Deus. Jesus não tem uma vida fácil. Ele precisa procurar emprego fora de Nazaré porque boatos sobre seu nascimento ilegítimo ainda o perseguem e poucos confiam em suas habilidades. Mas é um homem jovem temente a Deus, pois Ana o pega orando várias vezes.

É preciso dizer que este livro não é sobre Jesus, é sobre Ana. Ele é um personagem secundário, ainda que seja um homem apaixonante e com um pensamento muito à frente do seu tempo, tal como Ana. Os dois se completam, se amam, cuidam um do outro com uma dedicação comovente e os momentos íntimos dos dois são alguns dos melhores. Sabemos o que acontecerá a Jesus perto do final, porém esta história é sobre Ana; é sobre todas as mulheres que tiveram seus desejos ceifados por uma sociedade machista e cruel, mas passando-se na Galileia de dois mil anos atrás.

Jesus a trata com igualdade em todos os momentos. A autora pesquisou os eventos históricos relacionados à jornada dele e os inseriu na narrativa de maneira a acontecer com várias mulheres do enredo. Por exemplo, Ana quase é apedrejada após ser acusada de roubo e é Jesus quem intercede por ela. Não se sabe com certeza quem é essa mulher que aparece numa passagem do evangelho de João, mas Kidd usou a situação para mostrar Jesus em ação. Existem outras passagens adaptadas, como Tabita, amiga de Ana, tratada com injustiça pela própria família, que lava os pés de Jesus depois que ele a elogia.

O santíssimo lugar de um homem contém a lei de Deus, mas dentro de uma mulher existem apenas anseios.

Outras mulheres importantes da jornada de Jesus aparecem, como sua mãe Maria, suas irmãs, Maria de Magdala, mas o protagonismo é de Ana. O livro tem esse nome de maneira a aludir a um evangelho. Acho até que poderia se chamar Livro de Ana, mas a questão dos anseios tem duplo significado. Anseio é tanto desejo quanto angústia e se tem algo que sobra na vida de Ana são ambos. Os percalços em sua vida, seus desejos por mais e nunca podendo ter devido aos papéis que lhe foram impostos atravessam gerações e ainda ressoam porque nestes últimos dois mil anos certas coisas não mudaram.

Kidd também encontrou uma solução engenhosa para o sumiço de Ana dos registros e o motivo para tanta gente no livro achar que Jesus não era casado ou constituiu família. Tenho que dizer que chegar àquele final, sabendo o que ia acontecer, imaginando o sofrimento daquelas mulheres a quem me apeguei tanto, foi muito difícil. Ana e Yalta são mulheres fabulosas, daquelas que você gostaria de cumprimentar e sentar para conversar sobre tudo. Dentro delas existe aquela vontade, aquele desejo que transborda e é impossível de parar de jorrar.

A ambientação histórica é muito rica. Kidd se preocupou em retratar o caldeirão político da época e Herodes Antipas tem papel central em muitos dos eventos que acontecerão na vida de Ana. Ele é um homem detestável desde o começo e responsável direto por várias desgraças que acontecem. Ele se torna uma sombra na vida de Ana que, quando ela menos espera, ressurge e a impede de seguir com sua vida.

Refleti sobre aquele mistério por alguns meses. Seria porque eu não estivera presente enquanto ele viajava pela Galileia durante seu ministério? Seria porque as mulheres eram com tanta frequência invisíveis? Acreditariam que torná-lo celibatário faria com que parecesse mais espiritual? Não encontrei respostas, só a dor de ser apagada.

Li o ebook e não o livro físico, mas a edição está bem diagramada e revisada, com tradução de Lígia Azevedo, que está ótima.

Obra e realidade
É até difícil explicar, sem escorregar na misoginia, por que é tão ofensivo assim pensar em Jesus como um homem casado. Desde que li O Código Da Vinci que essa versão da história de Jesus me agrada muito. Historicamente há mais motivos para crer que ele fora sim casado e que sua esposa e a voz das mulheres de sua vida acabaram silenciadas por uma igreja controlada por homens e com tradição patriarcal.

É de se pensar que se a Bíblia contivesse a voz das mulheres dessa época, seus pensamentos, a maneira como atuaram para ajudar a propagar o cristianismo, como abriram suas casas para as reuniões dos primeiros cristãos, talvez as mulheres não tivessem sido tão oprimidas. Talvez elas tivessem lugar dentro das estruturas de poder da igreja. São poucas as denominações que deixam mulheres celebrar ritos. Na longa história do cristianismo teria existido apenas uma papisa, que se disfarçou de homem para subir na hierarquia da igreja católica, ainda que muitos acreditem que seja uma sátira anti-papal.

Humanizar a figura de Jesus é trazê-lo para mais perto das pessoas. Mesmo aqueles que não sejam cristãos devem admirar a atitude de um homem de se erguer praticamente sozinho contra o poder hegemônico e de pregar um mundo onde se deva perdoar as ofensas e amar ao próximo. Pense a respeito. Pense em como esse discurso, que pode parecer batido hoje, era revolucionário numa época brutal e violenta como aquela, onde pessoas crucificadas ficavam expostas na estradas para os passantes. Foi preciso muita coragem para fazer o que ele fez.

Sue Monk Kidd

Sue Monk Kidd é uma escritora premiada escritora norte-americana.

PONTOS POSITIVOS
Personagens
Bem escrito
Emocionante
PONTOS NEGATIVOS
Violência


Título: O Livro dos Anseios
Título original em inglês: The Book of Longings
Autora: Sue Monk Kidd
Tradutora: Lígia Azevedo
Editora: Paralela
Páginas: 488
Ano de lançamento: 2022
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Que livro! Não, sério, que livro! Eu não conseguia parar de ler. É impossível deixar o livro de lado. Tanta coisa aconteceu aqui, vivi tanto, caminhei, chorei, junto desses personagens que na hora de terminar a leitura eu esperava que existissem mais páginas. É um livro brilhante e acredito que a história de Ana cative porque é muito próxima de todas nós, cujos corações também estão cheios de anseios. Cinco aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!


Até mais!

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