O que Star Trek pode falar sobre inteligência artificial?

Um dos assuntos mais discutidos na internet nas últimas semanas é sobre a inteligência artificial por trás de chatbots como o ChatGPT. Os impactos de tal tecnologia já estão sendo sentidos. A revista Clarkesworld precisou suspender a submissão de contos porque foi inundada por produções escritas por IAs - mais de 500 delas. A Amazon também está passando por isso, com mais de 200 livros de autoria de tecnologias. A discussão sobre como impedir tais contribuições já começou e há escritores com medo de substituição, mas será que uma IA pode, de verdade, substituir um ser humano na escrita?

O que Star Trek pode falar sobre inteligência artificial?
Arte de p1xer

Star Trek fez várias discussões sobre as limitações da inteligência artificial que são muito pertinentes. O comandante Data é o único androide a servir na Frota Estelar. Porém, mesmo neste futuro pacífico, Data e as inteligências artificiais parecem sujeitas a limitações que as pessoas de carne e osso não têm. Data é muito bom em várias coisas que só os melhores computadores são, ao mesmo tempo, em que é profundamente limitado em outras. Data está constantemente tentando se melhorar, tentando ser mais humano, inclusive imitando comportamentos.

Mas já teve gente dentro da própria Frota Estelar questionando a consciência de Data, como no episódio "The Measure of a Man". Bruce Maddox, cientista da computação, espera produzir androides em uma linha de montagem, mas para isso precisa desconstruir Data para saber como ele funciona. Assim, a Frota decide conduzir um teste para determinar se Data é senciente e se deve ter direito a uma escolha.

Data acaba vencendo o caso e fica livre do desmantelamento, mas tem algo importante no episódio que pode passar despercebido pra muita gente: Picard, que age como um advogado de defesa, nunca prova a senciência de Data. O tribunal não pode descartar essa possibilidade, mas também não conseguiu provar nada. Apenas que o androide é articulado, que difere de outros androides já feitos. Mas em nenhum momento a consciência do androide ficou provada sem sombra de dúvida. Ninguém sabe com certeza se ele é tão consciente quanto um humano ou um alienígena.

Sua incapacidade de invalidar minha hipótese não é a mesma coisa que provar que ela é verdadeira.

Carl Sagan

Não podemos ter certeza se Data possui cognição genuína - o que também significa que não podemos ter certeza de que ele possui intuição, percepção, criatividade ou originalidade genuínas. Se essa perspectiva não diz nada respeito aos desenvolvedores de IAs da atualidade, então deveria.

Existem outros exemplos sobre as limitações de Data. No episódio "The Ensigns of Command", Data apresenta um recital de violino logo no começo. E o próprio Data diz que "embora eu seja tecnicamente proficiente, de acordo com meus colegas artistas, me falta alma." Mas Picard acredita que o recital de Data demonstra sentimento, algo que o androide lembra ao capitão não possuir. O que Data fez foi analisar a performance de três violinistas diferentes e tirar delas as melhores partes para compor seu recital. Data acredita que aprendeu a "ser criativo quando necessário".

Essa é uma das limitações de uma inteligência artificial. Embora os chatbots do Google e da Microsoft possam coletar dados de fontes diferentes e combiná-los em algo compreensível, nenhum aplicativo pode realmente criar novas informações a partir deles. É a diferença entre a concatenação simples e a síntese genuína. Picard pode achar que Data apresentou algo novo, mas o que falta a Data, algo que o androide reconhece, é a originalidade. Um violinista humano não iria simplesmente ouvir dois artistas diferentes e encontrar um ponto médio entre suas técnicas. Ao contrário, ele praticaria ambos os estilos, incorporando o que funciona e evitando o que não funciona, ao mesmo tempo em que usa sua própria intuição para aplicar suas próprias sensibilidades.

Um segundo exemplo vem no episódio "In Theory", onde a tenente Jenna D'Sora se apaixona por Data. O androide começa um relacionamento com ela, esperando que a experiência seja instrutiva em sua busca para entender melhor a humanidade. Ele então desenvolve e refina uma "sub-rotina romântica", que acredita demonstrar adequadamente a afeição por D'Sora. Para a tenente, por sua vez, a relação não vem sendo o que ela esperava e assim decide terminar com Data, incapaz de demonstrar qualquer reação.

D'SORA: Você foi tão gentil e atencioso. Achei que isso seria o suficiente.

DATA: Não é?

D'SORA: Não, não é. Porque por mais próximos que sejamos, eu realmente não importo para você. Não de verdade. Nada do que eu possa dizer ou fazer vai deixá-lo feliz ou triste, ou tocá-lo de alguma forma.

DATA: Essa é uma análise válida. É evidente que meu alcance excedeu minha compreensão nesta área específica. Talvez eu não seja tão humano quanto aspiro me tornar. Se você estiver pronta para comer, trarei nossa refeição.

D'SORA: Não, tudo bem, Data. É melhor eu ir agora.

DATA: Como quiser, Jenna. Não somos mais um casal?

D'SORA: Não, não somos.

DATA: Então vou deletar o programa apropriado.

Data arruinou o relacionamento, feriu os sentimentos da colega e o que é pior, o próprio Data não tem nenhuma reação ao rompimento. Ele não tem emoções, portanto não consegue analisar as de D'Sora. Ele nem mesmo sabe que perdeu algo muito precioso. Relacionamentos românticos bem-sucedidos exigem intuição e criatividade constantes, desde sentir como a outra pessoa está se sentindo até manter seu interesse todos os dias, muito depois do início da rotina. No entanto, Data não pode realmente responder às necessidades emocionais ou físicas de D'Sora; ele nem consegue reconhecê-las corretamente. O simples ato de dar toda a atenção a D'Sora durante um beijo está além das capacidades de Data.

O mesmo vale para as IAs. Os chatbots não podem avaliar como um humano está se sentindo, ou o que esse humano deseja, além dos detalhes superficiais que esse humano fornece. Ler nas entrelinhas é uma das coisas que separa a inteligência humana de um algoritmo baseado em dados, algo que nem mesmo Data conseguiu escapar.

Em 2015, a Microsoft soltou no Twitter um bot chamado Tay. A ideia da empresa era fazer com que ela aprendesse e evoluísse em sua interação com outros usuários, mas em poucas horas ela começou a proferir discursos racistas e a apoiar o nazismo. O experimento deu tão errado que o perfil da Tay está fechado e sem interação até hoje, enquanto a empresa analisar o que aconteceu.

Existem vários trabalhos que um robô, uma inteligência artificial, pode fazer. Mas será que são todos? Temos visto os desacertos com os carros autônomos, por exemplo, e as discussões sobre quem seria responsabilizado se um deles atropelar uma pessoa. Seja na direção de um carro, seja na frente de uma página em branco, um operador humano é necessário quando o ato de criar e de ser criativo for necessário. Escrever é muito mais do que colocar uma palavra na frente da outra. Uma inteligência artificial pode colecionar um monte de informação, porém não vai sintetizá-las para criar algo novo como um ser humano faria. Elas estão mais para papagaios artificiais.

Até mais!

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Comentários

  1. Essa discussão partindo do Data me pegou de jeito. Achei excelente o ponto de partida. Há alguns outros episódios ou momentos desses episódios que você mencionou que me fazem acreditar na senciência do Data, ao menos de forma parcial. Sou um pouco Picard nisso. E ainda tem o Doutor em Voyager né? Lembro que você escreveu um texto bem legal sobre a humanidade dele também. Mas no contexto atual, precisamos pensar muito mais sobre as limitações do que nas conquistas 'humanas' deles, digamos assim, né?

    Tem ainda um outro episódio que discute um pouco disso, em que o Geordi pede ao Holodeck um rival à altura do Data para algum desafio, não me lembro exatamente qual, e ele cria um holograma que vai aos poucos percebendo que está em uma simulação em uma nave. A conclusão a que eles chegam é que um rival para o Data só poderia ser uma AI autoconsciente, e assim surgiu aquele personagem. Onde será que esse episódio se encaixaria nessa discussão?

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    1. Então, esse episódio é onde nasce o Dr. Moriarty. Geordi pede que o computador crie um rival capaz de derrotar o Data e não Dr. Holmes. Pra mim, o Dr. Moriarty é um vírus de computador, porque os sistemas da Enterprise não são sencientes. Existe uma inteligência artificial, sim, mas ela não é consciente. Dr. Moriarty é bom em subterfúgios porque foi baseado num personagem fictício com uma estrutura capaz de pensar como o Data. Mas não vejo o Data como sendo um ser consciente.

      O Doutar da Voyager é diferente. Os hologramas são programados de outra maneira, principalmente os médicos, com várias camadas de sub-rotinas e cuidados com pacientes que Data não precisa ter. Com a interação diária com a tripulação, o Doutor desenvolve várias sub-rotinas consideradas "inúteis" como cantar ópera. Tanto que ele acaba sendo resetado num determinado momento e perde boa parte dessas experiências.

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  2. A IA está em tudo à volta.

    Li alguns textos de IA e não acho que ela vai alcançar bons escritores, mas no geral, ela é ótima em copiar clichês.
    Acompanho alguns fóruns de escritores, e há muitos escritores com preguiça de sair da caixinha, e que sequer revisam seus textos. Esses, eu sinto muito, já estão em desvantagem, pois a IA pelo menos não escreve frases confusas.

    E confesso que eu usei IA do Chatgpt no meu trabalho, para criar algumas fórmulas (e ela se saiu muito bem nisso, aprendi alguns truques novos) e até para "traduzir" alguns textos. Tenho alguns colegas que, apesar de eu tentar os convencer a escrever mais simples (e isso para responder o público bastante leigo, em ouvidorias), eles adoram o juridiques - talvez como forma de defesa. Fiz um teste com a IA para "reescrever" textos burocráticos de "forma amigável" e simplesmente INCRÍVEL. O contrário funciona bem também.

    Faça o teste. Escreva um texto seu e peça para a IA, por exemplo, arrumar o hífem por travessão e a pontuação dos diálogos. Ela é ótima nisso!

    Em todo Instagram de artistas há uma discussão sobre as novas IA de geração de imagem. Eu testei a Midjourney e é bem legal. Creio que possa ser uma ferramenta a ser utilizada. Mas, entendo como os artistas se sentem ameaçados. Aprender a fazer uma pintura digital leva anos e anos e anos. Vem uma IA e plaft, faz com poucas palavras.
    Porém ela gera imagens com vários erros - rios que não se conectam, galhos de árvores flutuantes, postes de luz tortos, mãos tortas. Nada que seja difícil de arrumar no photoshop.

    Como músico sei que quase toda música pop hoje é automatizado.
    O produtor tem lá seus plug-in que imitam instrumentos, fazendo tudo no teclado ou no próprio computador, com acordes pré-programados, e que inclusive se montam sozinhos. Mesmo a pessoa que canta pode ser desafinada, o tal "melody" esta lá para arrumar. E os plug-in estão cada vez mais incríveis, pois eles tem incorporado até formas de imitar imperfeições (a palheta batendo na corda, a diferença de força da mão direita e esquerda de uma baterista).

    Eu fui gravar um álbum, de forma profissional. A banda que me contratou tinha uma verba limitada e eu disse: olha, para eu tocar com instrumentos reais, vou gastar muito tempo, e tempo custa dinheiro (tempo de estúdio, equipamento, deslocamento, mais tempo de ensaio). Propus fazer tudo digital, programado e automatizado, saia 25% do preço. Após uma "amostra", eles aceitaram, já que a diferença é quase imperceptível para um público leigo.

    Imagino que escritores ou artistas gráficos vão usar automatização no futuro sim, como uma ferramenta de velocidade.
    Escritores menos, pois eles não precisam produzir livros aos montes (e os que fazem usam uma versão comercial da jornada do herói, mudando de nome o protagonista). Mas, publicitários, acho que vão usar sim, depois corrigir, dar o toque pessoal, "repintar" por cima. Ensinar a própria IA o seu estilo.

    Bom, um texto longo pois é uma polêmica do momento.

    Engraçado que eu estava em um evento do trabalho, representando meu órgão junto a um órgão de planejamento, e haviam tópicos para "possíveis ameaças de 2050". Todos os órgãos pontuaram a IA de uma forma ou outra. Imagina uma IA sendo usada para cyberterrorismo? Complicado.

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  3. muito bom o seu texto, como sempre. mas eu sou advogada da consciência do data, afinal, ele é o maior xuxuzinho de jornada haahhaha

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