Este não é um livro fácil de ler e acredito que muitos livros nem devam ser. Ruth Ozeki nos leva ao limite das sensações ao irmos e voltarmos no tempo, vendo diversos personagens pelos olhos das protagonistas. Mulheres fortes, com uma vida difícil, passando por mudanças intensas em cultura que não tolera fraquezas. O livro de Ozeki é intenso; melhor palavra para descrevê-lo.
Importante alertar que o livro contém descrições de cenas de violência sexual e física, além de outros assuntos sensíveis que podem funcionar como gatilhos.
Importante alertar que o livro contém descrições de cenas de violência sexual e física, além de outros assuntos sensíveis que podem funcionar como gatilhos.
O livro
Acompanhamos duas narrativas paralelas aqui, mas uma está dentro da outra, na verdade. Ruth é uma escritora que vive em uma ilha isolada na costa oeste do Canadá. Gosta de colher mariscos na praia e um dia ela encontra uma sacola cheia de cracas com uma lancheira da Hello Kitty dentro. Na lancheira um diário de uma jovem chamada Naoko. É possível que aquela sacola seja um dos inúmeros detritos lançados ao mar pelo tsunami devastador de 2011.Uma onda nasce das condições profundas do oceano. Uma pessoa nasce das condições profundas do mundo. Uma pessoa surge do mundo e avança como uma onda, até a hora de afundar novamente. Para cima, para baixo. Pessoa, onda.
Ruth começa a ler o diário da garota, sendo totalmente tragada pela história de vida de uma jovem que tenta escapar da realidade e do sofrimento, do bullying dos colegas e de um pai desempregado e suicida. Nao se dedica a escrever sobre a vida da avó, uma monja budista de 104 anos, lendo as cartas do bisavô, um falecido piloto camicaze da Segunda Guerra Mundial. E junto de Ruth somos também tragadas pelo enredo.
Alternando entre o diário de Nao e o cotidiano de Ruth depois que ela o encontra e começa a leitura, somos confrontadas com um diário, inicialmente, bem humorado, ácido, sarcástico, quase descontraído. Mas não se deixe enganar. Há muitos temas pesados sendo discutidos aqui. Nao usa o sarcasmo e a ironia como uma forma de lidar com os abusos e com a súbita mudança de vida. Criada na Califórnia, mas filha de pais japoneses, a situação da família muda bruscamente quando seu pai perde o emprego no Vale do Silício e a família é obrigada a se mudar para Tóquio.
Nao logo nos explica: ela quer morrer e vê na morte a única saída para sua vida de tortura, bullying e solidão. A mudança para o Japão parece tornar tudo ainda mais difícil para Nao que simplesmente não consegue enxergar uma luz no fim do túnel. Ou seja, já tomamos um tapa assim que a leitura começa e precisamos seguir adiante para tentar entender em que ponto a história das duas protagonistas se encontra. Nao é divertida, meio obscena, mas também muito direta sobre as situações que viveu. Isso deixa Ruth angustiada por não saber se ela e sua família ainda estavam vivos depois do tsunami.
Não é difícil se colocar no lugar de Nao. O Japão é o país de seus pais, não dela. Não há identificação nem familiaridade, pois para os colegas na escola Nao é uma estrangeira e todo o tipo de bullying pervertido acontece com ela. Enquanto isso, em casa, seu pai passa o dia fazendo origamis e a mãe se mata de trabalhar para manter a casa. Entra aqui a questão cultural de um homem que sempre foi o provedor de repente se ver sem função. Nao assiste à autodestruição do pai e se sente estrangulada numa vida sem sentido de tal forma que chega a largar a escola. Mas é a convivência com sua bisavó, Jiko, que a tira da inércia, que lhe dá um sopro de vida.
Um ser-tempo é alguém que vive no tempo, e isso inclui você, eu e cada um de nós que existe, existiu ou existirá um dia.
Do outro lado do Pacífico, Ruth é uma escritora com bloqueio criativo e vê no diário de Nao uma forma de buscar inspiração e de conhecer intimamente outra pessoa. Ruth sofre junto das leitoras as agruras que Nao e sua família precisam passar. Enquanto isso, ela mesma se vê em uma vida que parece monótona, insípida, em uma ilha isolada na costa do Canadá. Ela e o marido desvendam os mistérios do diário e das cartas escritas em francês que o acompanham.
Ainda que separadas por um oceano de tempo e de água, Ruth e Nao (e por consequência Jiko) acabam se fundindo em muitos momentos através de experiência cujo sofrimento acabam se equiparando. Muita gente pode pensar que uma adolescente depressiva e uma escritora de meia-idade podem não ter coisas em comuns, mas quantas pessoas diferentes existem dentro de uma mesma mulher? Ruth acaba usando a narrativa de Nao como uma lupa para analisar sua própria vida, quem sabe na esperança de destravar as emoções ali represadas. Acho que essa lente de aumento é algo que acabamos usando na leitura porque o que Nao descreve muitas vezes nos soa muito familiar.
Este livro não é inédito no mercado literário brasileiro, ele é um relançamento de A Terra Inteira e o Céu Infinito, lançado em 2014 pela Casa da Palavra. Inclusive fiz essa leitura muitos anos atrás e lembro de ficar com um nó na garganta com o livro. Pensei que uma releitura talvez fosse mais fácil de digerir, mas me pareceu ainda mais sofrido e denso do que antes. É um livro que precisa de um tempo para você digerir e pensar nele.
Não li o livro físico, o que é uma pena, pois me parece uma edição muito bonita. A tradução de Heci Regina Candiani está ótima e o ebook não tem grandes problemas de revisão ou de diagramação.
Obra e realidade
O livro estava pronto quando aconteceu o terremoto seguido de tsunami que devastou o Japão. Ruth Ozeki então o reescreveu para encaixar a tragédia no enredo por achar aquela uma realidade brutal demais para ser ignorada no contexto. A escritora do livro é a própria autora, tentando se encontrar com sua personagem no tempo e no espaço.Demorei bastante tempo para digerir esse livro, pois ele tem um conteúdo muito denso, uma história pesada - pois Nao sobre muito bullying e se envolve até com prostituição - e tem passagens sobre mecânica quântica que tentam explicar o que Nao chama de ser-tempo. A vida e história das três mulheres é muito bonita e difícil de acompanhar, pois todas têm suas próprias tragédias. Mas as três estão tão ligadas no tempo e no espaço, que não é possível mais separá-las. É aí que entra a mecânica quântica, porém a forma como foi explicada no final do livro se arrasta demais. Era algo que não precisava de tanta explicação, senti como se a autora não quisesse deixar a história ir embora e a esticou ao máximo.
Mesmo com esse final um tanto alongado, recomendo a leitura. Alerto que as passagens de Nao sofrendo bullying são bastante pesadas e você sofre demais com a personagem.
Ruth Ozeki é uma escritora americana-canadense, cineasta e sacerdote zen budista. Ganhadora de vários prêmios, foi a vencedora do Women's Prize de 2022.
PONTOS POSITIVOS
Nao, Jiko e Ruth
Bem escrito
Viaja pelo tempo
PONTOS NEGATIVOS
Final um tanto longo
Violência
Nao, Jiko e Ruth
Bem escrito
Viaja pelo tempo
PONTOS NEGATIVOS
Final um tanto longo
Violência
Avaliação do MS?
Fazer a releitura foi tão impactante quanto a primeira vez lendo o livro. Nao, Ruth e Jiko são personagens incríveis e fiquei tentada a imaginar o quanto da própria Ozeki está presente nelas. A ficção é uma ferramenta que desnuda totalmente seu autor e acaba sendo mais sincero do que uma autobiografia. Cinco aliens para o livro e uma forte indicação para você ler também!Até mais!
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