A experiência de leitura com esse livro é difícil de explicar. É brutal, feroz, violento, ácido, bem humorado, que lida com sentimentos e sensações que todo mundo já experimentou, porém em uma intensidade tamanha que acaba aproximando o livro de uma obra de terror. Aqui temos uma história sobre a infância, mas ao invés de inocência e descobertas, temos um jovem cruel e revoltado chamando Francis “Francie” Brady.
editora DarkSide
O livro
Nossa jornada se dá na Irlanda. Por muitos anos tida como uma imensa fazenda pelo Império Britânico, onde as pessoas morriam de fome, os ingleses os apelidaram de porcos, associando-os à sujeira, miséria, pobreza e total falta de modos. Os irlandeses, por sua vez, se empenharam em uma brutal independência da cora em 1922, o que mergulhou o país na miséria, levando milhões de pessoas a imigrar em busca de melhor oportunidades e condições de vida. A influência inglesa esteve sempre lá.
Por décadas a violência e a repressão perseveraram, influenciando a forma como os irlandeses viveram. Abusos infantis eram comuns, bem como os problemas psiquiátricos. Por muito tempo os irlandeses foram considerados um "povo louco", pois no começo do século XX os casos de transtornos mentais eram bem altos na ilha e um dos maiores de toda a Europa na época. É este o período em que o livro se passa, em meados dos anos 1960, e foi preciso dar esse contexto para entender as ações do protagonista.
Francie é um garoto que vive em um lar complicado. A mãe tinha problemas psicológicos e tendências suicidas e o pai alcoólatra não estava nem aí para nada. É Francie o narrador e estamos inseridos em sua mente o tempo todo. A narrativa em um estilo típico de fluxo de consciência, o que pode incomodar alguns, é um retrato panorâmico sobre a vida, as ações e os pensamentos desse garoto que descamba para a maldade e para a perversão de uma maneira vertiginosa.
Todo o contexto histórico, político e econômico da Irlanda dessa época são parte permanente da construção do personagem, pois Francie é uma sátira dessa Irlanda rural, pobre, presa ao passado, onde a dissolução de um casamento infeliz era impensável e abusos aconteciam às crianças com uam frequência assustadora sob as bênçãos das instituições católicas que regiam escolas e hospitais. Mas a vida desse garoto está para sofrer um revés.
Um novo aluno chega na escola de Francie chamado Philip Nugent, vindo da Inglaterra. Sentiu o choque que está para vir, certo? Philip é educado, elegante, em contrate com os "selvagens" irlandeses e tem uma grande e rara coleção de gibis que deixa os novos amigos doidos de inveja. É então que os garotos decidem pregar uma peça ao recém chegado: eles roubam a coleção, o que leva a mãe de Philip a ir tirar satisfações com a família Brady, pais de Francie. O que a senhora Nugent faz é o estopim de toda a revolta: ela os chama de porcos e lamenta que o filho tenha saído com gente "daquela laia". A partir daí, Francie declara uma guerra contra os Nugent.
É muito fácil julgar Francie como um desajustado, mas McCabe deu voz a um garoto oprimido, rejeitado, abusado e que poderia ter sido ajudado se as pessoas à sua volta e as autoridades estivessem dispostas. Não estavam. O livro é um panorama da vida desse garoto que cresce, se torna açougueiro, conforme entra em uma espiral de crueldade e transtornos de conduta. A simbologia dos porcos no livro está além do ofício de Francie, pois remete ao domínio colonial e a todo o legado inglês na ilha que refletiu em sua criação, além da forma como os irlandeses eram vistos pelo resto do continente.
O mais curioso de tudo é que em vários momentos é possível se solidarizar com o garoto, mesmo quando ele claramente está delirando e justificando seus atos absurdos. Tudo em sua cabeça faz um brutal sentido, o que em si não faz sentido na nossa cabeça. O livro é narrado em primeira pessoa, então somos guiados por seus pensamentos e por seu humor ácido, uma forma que ele encontrou de lidar com situações de abuso. Por ser um fluxo de consciência, o ritmo pode incomodar. Faltam vírgulas, pontuação e separação entre muitas frases porque a ideia do autor era a de mostrar a cabeça e os pensamentos do protagonista tal como eram. Essas frases quebradas podem acabar incomodando em certos momentos.
A edição vem em capa dura e com o capricho diabólico da DarkSide. Achei excelente a inserção de um posfácio com uma análise história de Luiz Gasparelli que contextualiza o cenário de Francis e resgata a história sangrenta da ilha. Encontrei alguns probleminhas de revisão, como letras não batidas e a tradução foi de Laura Zúñiga e está muito boa.
Obra e realidade
Sempre vi em filmes e, principalmente, séries de TV a forma como os irlandeses são vistos. Em Lei & Ordem, a série original, existiam dois personagens principais que era descendentes de irlandeses e me lembro claramente de um episódio em que o pai de um acusado diz que a culpa do filho ter arrumado confusão é porque seus amigos da escola eram irlandeses. E eu me pegava pensando o motivo disso. Agora eu entendo. O livro me ajudou a compreender o cenário que levou tantos irlandeses para os Estados Unidos e a forma como isso acabou refletido na ficção.Butcher Boy foi adaptado para o cinema por Neil Jordan em 1998, com o título Nó na Garganta. Há uma edição em livro com esse título que é de 1999.

Patrick McCabe é um escritor irlandês. Conhecido por seus romances obscuros e violentos ambientados na Irlanda contemporânea, geralmente em cidades pequenas.
Pontos positivos
Sombrio e divertidoBem escrito
Romance histórico
Pontos negativos
Errinhos de revisãoViolência
Abuso
Avaliação do MS?
Não pensei que fosse gostar desse livro. Não é minha leitura de costume e admito que o fluxo de consciência nem é uma das minhas formas preferidas de narrar um livro. Porém Francis é um personagem fascinante e você quer ler mais sobre ele e como tudo acaba. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!
Até mais! 🐷
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