Resenha: Arrastados, de Daniela Arbex

É difícil dizer as emoções que este livro evoca. Chorei várias vezes, porque é impossível não fazer isso. Não é uma leitura fácil e nem deve ser. Esse livro não deveria existir se as empresas agissem como manda a lei e não tentassem dar seu jeitinho no que se refere à segurança das pessoas, mas infelizmente ele existe, ele é real, é duro e necessário.

A tragédia (anunciada) em Brumadinho, com o rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão da Vale é uma das maiores em perdas de vidas humanas e em duração de resgate no Brasil e no mundo. Ainda há bombeiros na região procurando seis joias, seis pessoas que foram engolidas pela lama de rejeitos que desceu da barragem. Daniela Arbex nos mostra o desespero dos sobreviventes, das famílias, as causas e o trâmite jurídico depois da lama passar.

O livro
Era mais um dia normal de trabalho para os funcionários da Vale e empresas terceirizadas. Os funcionários levantaram cedo, pegaram o ônibus fretado ou seus próprios carros e rumaram para mais um dia, uma sexta-feira ensolarada, na mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Alguns funcionários estavam de folga, outros fariam exames médicos, alguns estagiários estavam esperançosos que seriam efetivados. Era um dia comum para todos.

Resenha: Arrastados, de Daniela Arbex

Era meio-dia e vinte e oito, horário de almoço, com grande vai e vem de funcionários quando a barragem de rejeitos de mineração se rompeu, despejando mais 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minérios vale abaixo. Vale este que continha - espantosamente - os prédios administrativos, refeitório, consultório médico, pátio de trens, almoxarifado e catracas de entrada na mina. A velocidade da onda de rejeitos era tanta que em um minuto ela atingiu os prédios administrativos da Vale que estavam a mais de um quilômetro de distância.

A onda arrastou tudo: prédio, pessoas, animais, árvores, trilhos, vagões, veículos pesados, carros, criando uma massa de detritos que escavou o fundo do vale e dragou a região. Depois de sair das dependências da mina, atingiu a área rural de Brumadinho. Levou casas, chácaras, pousadas, tudo o que estava pela frente, inclusive o pontilhão da linha férrea da MRS Logística. Enquanto funcionários corriam por suas vidas, turistas e moradores da região começam a subir para as partes mais altas.

Quando, afinal, consegue puxar o ar para os pulmões, passou as mãos no rosto, na tentativa de limpá-lo e entender o que acontecia. Foi quando sentiu que havia lama dentro da sua boca, dos olhos e dos ouvidos. Exausta, olhou para trás, onde deveria estar sua casa. Não havia mais nada, só enxurrada. O mundo dela tinha desaparecido.

Daniela Arbex nos conta sobre os bastidores da tragédia. Fala sobre o espanto dos primeiros bombeiros, quando viram o mar de lama e de como seus comandantes temiam que estivessem mandando a tropa para a morte. Não dava para simplesmente andar sobre os rejeitos, era preciso rastejar, usando um pedaço de madeira ou pular entre as superfícies expostas de troncos e veículos. Se um afundasse, seria difícil sair. Enquanto os bombeiros chegavam, funcionários da Vale tentaram ajudar os colegas presos aos escombros. Várias vidas foram salvas dessa maneira.

Entre funcionários da Vale, terceirizados, moradores do entorno e fetos na barriga de suas mães, o número de vítimas em Brumadinho é de 272. Ainda há seis joias - termo que os bombeiros utilizam ao invés de corpos ou segmentos de corpos - para aqueles que ainda estão soterrados. Brumadinho foi uma tragédia anunciada, mas que pegou muita gente desprevenida, pois muitos achavam que depois do rompimento da barragem em Mariana algo assim não mais aconteceria. Mas aconteceu.

No IML, quando os corpos foram radiografados para se analisar a extensão dos ferimentos, as chapas saiam brancas devido ao volume de rejeito nas peles das vítimas. Foi preciso lavar um por um para se prosseguir com as necrópsias e a lama que escorreu pelas pias entupiu o sistema de esgoto abaixo do IML. Os legistas, acostumados a lidar com cadáveres, jamais esqueceriam da situação dos corpos e dos segmentos de corpos que chegaram. Deixo aqui um alerta para as descrições dadas por Daniela. Não são muitas, porém elas chocam. E acho que deve chocar para que a gente entenda o nível de destruição causada pela mineradora que trucidou seus próprios trabalhadores.

Após discorrer sobre os eventos daquele dia, Daniela conta como foi o processo judicial, ainda que sem muitos detalhes, apontando apenas os pontos principais. E devo dizer que é de enfurecer saber que até agora NADA aconteceu. Sem falar do fato de que a Vale tentou obter um DESCONTO no valor da compensação ao estado de Minas Gerais, alegando que já tinha gastado bastante com ações compensatórias. Se multiplicar o valor das vidas daquelas pessoas por um milhão, ainda assim seria pouco diante da tragédia. Pois a Vale sabia que a barragem era perigosa e nada fez. Ao contrário, seu presidente dava palestras falando sobre a seguranças das operações da mineradora. No ano de 2019, o ano da tragédia, ela terminou valendo 26 milhões a mais.

Apesar de sua dimensão, o maior desastre humanitário do Brasil não reverberou no mercado financeiro. As tragédias de Mariana e Brumadinho até resultaram em queda temporária das ações da vale, mas de lá para cá a empresa cresceu. Por maior que seja o desastre, o que parece pesar no cálculo das ações é a capacidade de a empresa gerar lucro.

Existem fotos coloridas no começo e no meio dos capítulos que dão uma dimensão da tragédia, a começar pela capa. Daniela não abusou de descrições e informações, ela deu os fatos como eles são: crus, duros, sujos de lama. Não dá para não falar do pesar das famílias, da raiva, da esperança de se encontrar um ente querido. Mas Daniela foi muito sensível ao fazer isso. Não vai ser uma leitura fácil, mas você deve fazer.

Li o ebook e não o livro físico, que é em capa comum. Alguns errinhos de revisão passaram despercebidos, mas não o suficiente para atrapalhar a leitura.

Obra e realidade
Lembro da entrada ao vivo da televisão falando sobre o rompimento da barragem. Naquele momento não se tinha ideia do tamanho da tragédia, mas especulava-se que centenas de pessoas estariam desaparecidas. Mas até a leitura do livro de Daniela eu não tinha uma exata noção da tragédia humana. Ler as notícias frias dos portais não é o mesmo que ler as transcrições do desespero de parentes em busca de seus entes queridos. Os bombeiros ainda estão lá, cavucando aquele rejeito, a despeito dos riscos à própria saúde, em busca de joias.

Daniela relata o que foi feito pela Vale depois da tragédia, mas foi pouco diante da magnitude do evento. E o que ela vai pagar em compensação também é pouco, pouco mais do que o bônus para os executivos da empresa. É essa a justiça? Parentes que sepultaram seus entes queridos em caixões lacrados porque os corpos estavam irreconhecíveis. Isso é que o que VALE a vida das pessoas?

Chorei muitas vezes. Chorei, parei a leitura, voltei. Um pai ia até a beirada da área de rejeitos, aguardando notícias da filha. Os bombeiros já o conheciam. Ele chegava e dizia: Filha, papai chegou. O corpo dela foi um dos últimos encontrados, mais de dois anos depois da tragédia.

Daniela Arbex

Daniela Arbex é uma jornalista brasileira dedicada à defesa dos direitos humanos. Formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 1995, iniciou a carreira no jornal Tribuna de Minas, do qual foi repórter especial por mais de duas décadas.

PONTOS POSITIVOS
Autora nacional
Brumadinho
Fotos, dados e entrevistas
PONTOS NEGATIVOS
Aviso de gatilho para descrições de corpos

Título: Arrastados: Os bastidores do rompimento da barragem de Brumadinho, o maior desastre humanitário do Brasil
Autora: Daniela Arbex
Editora: Intrínseca
Páginas: 328
Ano de lançamento: 2022
Onde comprar: Amazon

Avaliação do MS?
Como eu disse lá no começo, este livro não deveria existir, mas ele existe por causa da negligência da Vale, do lucro acima da segurança de seus funcionários, da vida deles, de seus filhos, pais, mães, avós. Um casal deixou filhos gêmeos que hoje têm três anos e só sabem quem são pai e mãe por meio de fotos. A Vale não ligou para nenhum parente para pedir desculpas, além de ter questionado o valor da compensação ao estado de Minas Gerais. Mas as ações da empresa seguem muito bem. Elas tiveram uma queda após a tragédia, mas se recuperaram e a empresa segue sendo uma das mais valiosas do país. Leitura essencial e obrigatória.

VALE ASSASSINA.

De tudo ficaram três coisas. A certeza de que estamos começando. A certeza de que é preciso continuar. A certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar...

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