Se você é fã de fantasia, não pode deixar de ler Piranesi. É sério. É uma das coisas mais criativas e bem construídas que li em muito tempo, um mundo onírico e mágico onde um jovem, chamado Piranesi, investiga uma casa misteriosa, seus salões labirínticos, suas estátuas e marés. Ele é nosso narrador, ainda que sua memória não seja das melhores e nem sempre possamos confiar no que ele vê.
O livro
Piranesi vive na Casa. Talvez sempre tenha vivido nela. Ele dedica sua vida a catalogar e estudar seus inúmeros e labirínticos salões, a registrar as várias estátuas e o regime de marés. O mar volta e meia inunda os salões e vestíbulos, mas em geral é um lugar calmo, de onde Piranesi tira seu sustento, com peixes, mariscos e algas. Seus cabelos são enfeitados com conchinhas, espinhas de peixe, coisas belas que ele tira da água. E há o Outro. O Outro é a única pessoa com quem ele tem contato, pois fora isso vive sozinho, se reunindo com o Outro e lhe passando informações sobre o lugar.O dia a dia de Piranesi pode parecer um tédio em um primeiro momento, mas ele se mantém ocupado. Seca algas, faz cordas, explora os salões e as estátuas, saúda e conversa com as aves. E claro, ele homenageia os mortos, esqueletos embranquecidos que jazem na Casa, que ele sempre mantém arrumados e limpos. Aquele é seu mundo, seu lar, sempre foi, certo? Então deve cuidar dele e agradecer por estar vivo.
O Outro, por sua vez, não tem pela Casa a mesma reverência que Piranesi, o que o entristece. Ele fala daquele lugar incrível com certo desdém, sem ver que aquele é um lugar vivo, dinâmico, cheio de coisas para viver e investigar. Ele usa Piranesi para isso. Em um primeiro momento a relação dos dois parece bem amigável. O Outro lhe traz presentes de vez em quando, pede que ele investigue salões e marés. Mas o Outro está em busca de algo e Piranesi acaba sendo seu instrumento para chegar a isso.
Uma característica que achei brilhante da escrita da autora foi a forma como conseguimos ver com bastante clareza os salões, as estátuas, as aves, as escadarias e passagens deste imenso labirinto de recintos alagados ou não. É sair do lugar comum imaginar que o mundo de Piranesi é uma imensa construção onde um oceano está aprisionado, com seu próprio regime de marés. E o que é interessante é que isso não me incomodou. Sempre comento nas resenhas que tenho dificuldades com mundos pouco explicados, mas Piranesi consegue a façanha de ser completo e totalmente misterioso na medida.
Talvez até mesmo as pessoas de quem se gosta e a quem se admira muito possam fazer você enxergar o Mundo de maneiras que preferia não ver.
Página 233
O começo foi meio devagar, admito. O livro demorou a me fisgar, mas a partir do momento que Piranesi começa a encontrar mensagens rabiscadas com giz no chão dos salões, a coisa começa a ficar interessante. Este não é um livro muito longo, mas imensa construção de mundo de Clarke passa a impressão de estarmos lendo um calhamaço. Se você curte fantasias que entreguem um começo mais estruturado, talvez se incomode com Piranesi, mas confia. Vai em frente. Insista na leitura, porque vale à pena.
Se há mensagens no chão, será que tem outra pessoa na Casa? Essa dúvida consome Piranesi, pois o Outro o adverte a tomar cuidado. Essa pessoa pode levá-lo à loucura. Se antes Piranesi andava tranquilamente pelos salões, explorando suas estátuas e falando com os pássaros, agora ele precisa tomar cuidado. Sua solitária rotina foi perturbada, deixando-o ansioso. Uma coisa a se dizer de Piranesi é sobre sua inocência. Ele não consegue enxergar certas coisas como elas verdadeiramente são e isso é incrível de acompanhar.
A Casa é uma personagem em si dentro do livro. Ela não é uma casa em outro mundo, é uma casa-mundo, um lugar por si só, com seus oceanos e nuvens. É até difícil imaginar o conceito, mas as descrições dadas pelo personagem conseguem moldar esses contornos com bastante lucidez. É possível sentir o cheiro da água do mar, a bruma das nuvens baixas nos salões, o cheiro das algas que Piranesi usa para se alimentar. E por mais mágico que tudo isso possa ser, a autora não recai na armadilha de explicar tudo por magia. Piranesi precisa se esforçar para sobreviver, nada é fácil em sua rotina.
É até difícil resenhar o livro sem saber se o que eu disser é spoiler ou não. Há muito mistério sendo resolvido ao longo das páginas, que vão se revelando como um grande quebra-cabeças. Então se você se sentir perdida em um primeiro momento, acredite, as coisas se resolvem mais para frente. O que posso dizer é que Clarke ressignifica a fantasia com uma obra criativa e bem construída, com um personagem que não sabe quem é, mas ao mesmo tempo se sente pleno por viver na Casa.
O livro em si é belíssimo, em capa dura com detalhes em acobreado e um incrível trabalho gráfico na parte interna, como você pode ver acima e em papel amarelo. Ele é dividido em sete capítulos longos, com imagens de labirintos entre eles. O já conhecido marcador da Morro Branco acompanha a edição. A tradução ficou por conta de Heci Regina Candiani e está ótima. Não encontrei grandes problemas de revisão ou diagramação.
Obra e realidade
Giovanni Battista Piranesi (1720-1778) foi um famoso gravurista e arquiteto italiano. O livro e o título fazem alusão a uma de suas obras, uma série de 16 gravuras intituladas "Imaginary Prisons", onde ele criou imensas salas subterrâneas, com escadas, salões e máquinas espetaculares. Mas uma das referências mais brilhantes da obra é com Platão e sua famosa caverna, onde as pessoas viam as sombras dos objetos na parede e acreditavam que aquilo era a vida real.Não posso dar mais detalhes a respeito, mas há momentos em que Piranesi parece dependente da Casa e de seu Mundo. Será que existem outras pessoas fora dali? Mais do que setenta? Ele duvida, setenta pessoas é gente pra caramba! Claro, do ponto de vista de quem vive sozinho, essa já é uma multidão. Esse tipo de pensamento está presente em vários momentos do livro, uma sacada genial da autora e pela forma como a discutiu.
Susanna Clarke é uma escritora inglesa, conhecida por seu romance de estreia, Jonathan Strange & Mr. Norrell (2004), adaptado para a televisão pela BBC
Pontos positivos
Bem escritoTrabalho gráfico
Construção de mundo
Pontos negativos
Começa devagar
Avaliação do MS?
Se você procura uma fantasia que não envolva dragões e elfos, mas que ainda contenha uma magia antiga e presente, então achou! Com uma incrível construção de mundo e personagens cativantes, Piranesi é um deleite, mesmo que o começo pareça confuso. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!Até mais! 🌊
ameiiiii esse livro de mais.
ResponderExcluir