Resenha: Terráqueos, de Sayaka Murata

Posso eleger esta leitura como a mais surreal de 2021. Terráqueos lida com questões muito importantes, dolorosas e pertinentes, mas o faz de uma maneira que se aproxima mais do surrealismo do que da ficção. É até complicado definir o que seria esse livro. E se engana quem acha que é uma ficção científica por causa do título.

O livro
Natsuki Sasamoto é a protagonista e narradora do livro. Começamos quando ela ainda é uma menina, entrando na adolescência. A família segue para as montanhas de Akishina para o festival Obon, o mais longo e importante evento religioso do Japão. É lá que a família se reúne todos os anos para celebrar os antepassados e é onde Natsuki reencontra seu primo, Yuu. Natsuki diz que tem poderes mágicos concedidos por seu bicho de pelúcia, Piyut, que também lhe conferiu uma varinha e um espelho mágicos.

Resenha: Terráqueos, de Sayaka Murata

A garota não se sente parte da família. O núcleo é composto por seu pai, sua mãe e a irmã mais velha, a voluntariosa Kise, enquanto Natsuki se sente fora desse arranjo, uma estranha. É conversando com o primo que ela percebe o quanto são parecidos. Yuu tem uma relação esquisita com a mãe, que diz que ele é um alienígena. A questão é que o garoto leva isso a sério. Ele diz vir do planeta Powapipinpobopia e que está em busca de sua nave espacial para voltar para casa. Os dois logo se reconhecem e se tornam namorados.

Natsuki acredita que Yuu veio do mesmo planta de Piyut e também passa a crer que veio de lá. Quanto mais é desprezada pela família, mais passa a acreditar nisso, sentindo que tem uma missão na Terra. Ela conta os dias para rever Yuu enquanto tenta sobreviver a mais um dia na casa da família e na escola. Admito que o nome do planeta é um trava língua danado, mas há uma razão para isso. O livro tem coisas muito mais difíceis de dizer do que Powapipinpobopia.

Uma lixeira é uma coisa útil de se ter em casa. Naquela casa, eu era a lixeira. Quando meu pai, minha mãe ou minha irmã não tinham o que fazer com seus sentimentos desagradáveis, jogavam-nos em mim.

Página 50

Natsuki sofre todo tipo de abusos, inclusive de um professor que as colegas achavam bonito e isso se revela de maneira física nela. Perde o paladar e parte da audição e em uma tentativa de retomar o controle de seu corpo, ela aprofunda sua relação com Yuu, mas a família os interrompe e os primos perdem contato.

Totalmente desajustada à vida, Natsuki vê a sociedade como uma grande Fábrica de Gente, bem semelhante ao quarto dos bichos-da-seda na casa dos avós nas montanhas. Ela acredita que a Fábrica tem como função gerar bebês humanos e fazer as pessoas trabalharem alegremente. Qualquer pessoa que não se enquadre nesse arranjo é excluído ou perseguido. A crítica de Natsuki não é tão despropositada assim. A sociedade é uma máquina de moer gente, principalmente os mais vulneráveis.

O livro salta para a idade adulta de Natsuki, que está casada em um arranjo pouco convencional. O casamento foi a maneira de fugir da vigilância da família, mas é apenas uma conveniência, não há amor ali. Os dois tentam fugir da constante cobrança de suas famílias. Principalmente Natsuki que mal pode visitar uma antiga amiga da escola que já começam os questionamentos sobre bebês. É cansativo, é intrusivo, e aposto que muitas mulheres que nunca quiseram engravidar e ter filhos vão se ver em Natsuki nestes momentos.

Até quando eu teria de sobreviver? Será que algum dia poderia apenas viver e não sobreviver?

Página 68

Em meio a varinhas mágicas, bruxas e alienígenas, o livro levanta questões muito pertinentes. O deslocamento social e a constante cobrança para seguir os ditames sociais, como casar e ter filhos, nesta ordem, estão presentes desde o início. O enredo faz sempre a constante pergunta: até onde você iria para ser você mesmo? Natsuki é constantemente bombardeada pela intromissão dos outros em sua vida. E quando finalmente pede ajuda, não acreditam nela, dizem que é culpa sua. Especialmente a mãe, que assume contornos abusivos em alguns momentos. Há partes tão indigestas que é preciso respirar fundo, principalmente quando o livro se aproxima do final e o surrealismo toma forma. Como disse a Jessica Reinaldo, em sua resenha, é uma narrativa do absurdo.

Tinha lido a respeito do livro primeiro na revista Quatro Cinco Um. Depois vi a Gabi Barbosa comentando a respeito em seu blog e, por fim, a resenha da Jessica, mas nada, NA-DA, me preparou para o que eu li aqui. Houve momentos em que me irritei com Natsuki, mas em outros me compadeci e até me senti em seu lugar. A forma como ela usa o planeta Powapipinpobopia como fuga e se vale de metáforas para lidar com os abusos levanta muitas questões sobre a forma como Natsuki vê a si mesma. Não só é uma questão de um olhar próprio, mas também de fuga. Se ela for de fato de Powapipinpobopia, então seu deslocamento está explicado e ela pode viver mais tranquila ao saber que há uma razão para isso. Mas não estamos todas deslocadas numa socieade que constantemente cobra um padrão? Conforme-se ou seja excluída, é esse o mantra.

Em capa comum e papel amarelo, a tradução foi assinada por Rita Kohl e está perfeita. Nâo há erros de revisão no livro, que veio acompanhado de um marcador de páginas.
Obra e realidade
A forma como Sayaka narra o livro faz parecer um legista narrando uma necropsia. É um tom frio, com uma lógica que beira o absurdo, dissecando os eventos de maneira crua e desconfortável. Taí uma boa palavra para descrever o livro, ele é desconfortável, incômodo, não é uma leitura que deixa o coração quentinho, mas é aquela que te joga em uma montanha-russa de emoções em que não há pausas para respirar. A lógica fria de Natsuki acaba atingindo fundo quem lê e também sente essa pressão social para seguir um padrão. Parece mesmo haver uma estrutura perversa, como a de uma fábrica, que fagocita as pessoas até não restar nada, além de uma casca. Natsuki estaria assim tão errada?

Sayaka Murata

Sayaka Murata é uma premiada escritoa japonesa.

Pontos positivos
É surreal
Akishina
Temas importantes
Pontos negativos
Gatilho de violência abuso sexual
Pode ser lento em algumas partes


Título: Terráqueos
Título original em japonês: 地球星人 (Chikyu seijin)
Autora: Sayaka Murata
Tradutora: Rita Kohl
Editora: Estação Liberdade
Páginas: 288
Ano de lançamento: 2021
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Não vou dizer que este livro vai agradar a todo mundo. Como disse acima, ele é desconfortável, com alertas de gatilho e não recomendo a todo mundo. Porém, é um livro bem escrito, cujo propósito é exatamente o de ser indigesto, de sacudir a cabeça das leitoras ao tratar de temas tão pertinentes. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!


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