Depois de quase dez anos do lançamento de sua graphic novel autobiográfica Cicatrizes (Leya, 2009), David Small retorna com uma obra ficcional, mas que mostra o crescimento forçado de um jovem abandonado pela mãe que se vê lutando contra o mundo, contra o que é certo e o que é errado, e contra si mesmo.
O quadrinho
Passando-se na década de 1950, acompanhamos a jornada de Russell Pruitt, um garoto de 13 anos, de Ohio, cansado das discussões constantes dos pais. Sua mãe então decide ir embora, abandonando a família para ficar com um jogador de futebol americano, deixando o garoto com o pai, que decide se mudar para tentar ganhar a vida longe dali. Ele bota a casa a venda, cata as coisas que pode carregar e vai com Russell para a Califórnia. Lá, Russell tem uma tia, que talvez possa ajudá-los.A jornada acaba em uma cidadezinha chamada Marshfield, praticamente um fim de mundo, onde eles alugam um quarto em uma pensão administrada por uma família chinesa, os Mah. E enquanto as aulas não começam, Russel explora a cidade, a casa cheia de artefatos que lhe são estranhos, conhecendo também o desprezo e o racismo da população contra a família Mah. É numa dessas andanças que o garoto encontra gatos mortos. Alguém na cidade vem matando animais de estimação e parece que ninguém liga muito para isso.
Seu pai, alcoólatra e distante, arruma emprego e acaba deixando Russel à própria sorte durante a maior parte do tempo. Mas nos momentos em que estão juntos, quando Russel tenta ser gentil por vê-lo trabalhar tanto, a única coisa que toma é esporro. Conhecer a garotada da cidade também é um desafio. Eles podem ser cruéis e irritantes, como muitos adolescentes acabam sendo em um momento da vida em que fazer parte de um grupo é muito importante. Russel se ressente de ser o forasteiro, querendo se enturmar do jeito que der.
Um dos sentimentos mais presentes nesse quadrinho é o da solidão. Russel pode estar rodeado de gente que, ainda assim, se sente sozinho e desamparado. Mesmo quando recebe ajuda dos Mah, ele se sente deslocado, perdido. Os valentões da escola não ajudam em nada e ele se torna uma vítima preferencial de bullying dos colegas. É a amizade de um garoto da sua sala, chamado Warren que parece amenizar a sensação de solidão. Mas as coisas não melhoram muito daí em diante por causa do preconceito.
Ainda que se passe na década de 1950, o quadrinho lida com questões muito pertinente e presentes em dias atuais. Preconceito, xenofobia, homofobia, masculinidade tóxica, bullying, estão todos bem trabalhados. Há cenas de violência gratuita porque era esse o cotidiano daqueles garotos, então fica o alerta de gatilho. O autor foi bastante sensível em alguns momentos para outros vir com a voadora no peito de quem está lendo. Existem momentos de intensa revolta tanto de Russel quanto de quem lê, já que ele comete alguns erros grotescos ao longo da leitura. Ele não é um personagem perfeitinho; Russel cometerá erros mas vai se esforçar para repará-los, o que já é uma qualidade que seus colegas não possuem.
Gostei muito dos traços do autor e a forma como seus personagens possuem expressões tão fortes. Os olhos de Russel, principalmente, são bastante significativos. Sem dizer nada, o personagem passa toda a sua angústia pela página. Os valentões da história são de fato dois escrotos que você quer moer na porrada na primeira oportunidade. As mentiras que eles contam têm consequências terríveis no decorrer da leitura e você teme que Russell acabe envolvido ou cometendo erros que lhe custarão caro.
Todo em preto e branco, é um quadrinho robusto de mais de 400 páginas. Intercalando longas cenas silenciosas com diálogos, a leitura flui bem, mas encontrei erros de revisão, como letras faltando em alguns quadros. A tradução foi de Bruno Dorigatti e está ótima.
Obra e realidade
O livro foi escrito e reescrito por anos pelo autor. David não gostava do visual geral do quadrinho e redesenhou as mais de 400 páginas para que chegasse ao formato que queria. Escuridão ficou entre os vencedores do Alex Awards, da American Library Association, e foi indicado pelo Boston Globe como um dos melhores livros de 2018. David reinterpretou os nostálgicos anos 1950 para uma realidade bruta que pode espantar alguns leitores.David Small é um escritor e ilustrador norte-americano. É autor e artista de vários livros para crianças, traduzidos para diversas línguas, adaptados para animações e musicais e ganhadores dos principais prêmios para ilustração, como a Caldecott Medal em 2001, dois Caldecott Honor Awards, a medalha de ouro da Society for Illustrations e a Christopher Medal por duas vezes.
Pontos positivos
Sensível e brutalBem escrito e desenhado
Personagens bem escritos
Pontos negativos
Erros de revisão
Violência e preconceito
Avaliação do MS?
Esse é um quadrinho melancólico, triste e brutal. Brutal pela forma como trata temas tão importantes, brutal pela forma como o protagonista é tratado por aqueles que confiou e que achava que o amassem, brutal para quem lê. Há momentos bem fortes, em que tive que parar e respirar fundo. Se você gosta do trabalho do autor ou se procura um quadrinho bem escrito e profundo, então encontrou. Quatro aliens para a graphic novel e uma forte recomendação para você ler também.Até mais!
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