Sou uma grande fã da escrita da Maja Lunde desde seu livro anterior, Tudo que deixamos para trás. Maja escreve sobre mudanças climáticas, porém mais do que isso, escreve sobre pessoas. Sobre as difíceis decisões que precisamos tomar em meio ao caos, sobre como podemos fazer coisas inimagináveis por aqueles que amamos.
O livro
Temos dois protagonistas neste livro. A primeira é Signe, uma norueguesa na casa dos 70 anos que lutou a vida inteira pela preservação do meio ambiente. Ela narra sua história e conta como participou de ocupações, passeatas, protestos, foi presa e perseguida por ter lutado contra a destruição da natureza, principalmente em sua cidade natal, na Noruega, junto a um fiorde. Agora ela navega no Blå, um veleiro ágil, que é sua casa e também o título original do livro. Signe retorna para sua cidade natal após longos anos longe dela e se espanta em como tudo parece igual e ao mesmo tempo diferente.O segundo é David, um jovem pai francês que está fugindo dos implacáveis incêndios que destruíram sua casa em Argelès, no sul da França. Junto de sua filha Lou, David pega carona e desce em frente a um campo de refugiados. Por 24 dias ele andou com a criança pelas estradas até chegar a esse campo, lutando contra a sede, a fome e o cansaço. David e Lou são refugiados ambientais e esperam encontrar no campo Anna, sua esposa e August, apenas um bebê. Mais de 20 anos separam as narrativas de Signe e de David: ela fala de 2017 e David fala de 2041. Esse futuro próximo é um futuro abrasador, assolado pelos grandes incêndios que consomem florestas, campos, pastos e cidades. A falta de água empurrou milhares de pessoas para os países do norte da Europa, que fecharam suas fronteiras aos estrangeiros. Parece familiar?
Não há nada que faça as pessoas ficarem mais agressivas do que um calor que não as deixa dormir.
Página 138
Enquanto Signe faz uma viagem em seu veleiro e relembra seu passado conturbado com Magnus, um amigo e depois namorado, David vive a crua realidade do campo de refugiados, a comida pouca e a água escassa, onde eles têm direito a apenas um banho por semana. Ambos vivem uma constante espera, uma que é angustiante de acompanhar, porque há muitas pessoas ali na mesma situação que eles, talvez até pior. David tem sua filha para cuidar, mas há outros que nitidamente perderam alguém, seja para o fogo ou para a falta de água. David sente falta das pequenas coisas de seu apartamento abafado em Argelès, sente falta da esposa e do bebê August, sem conseguir pensar em uma saída.
Comentei no Skoob quando finalizei a leitura o quanto esse livro é triste e melancólico. É uma obra de ficção, mas ao mesmo tempo é tão brutalmente real que dá um aperto no coração. Os dois personagens tomam decisões que os tornam antipáticos em alguns momentos, quase intragáveis. Em vários momentos eu queria estapear David por suas molecagens, mas ele é mesmo um pai muito jovem, cansado e em uma situação limite. Eu tinha que sempre pensar que aquela situação que eles viviam era inédita para mim. Nunca precisei abandonar minha casa às pressas por causa do fogo, tenho água à disposição para consumo, para banho e para lavar roupas. Mas e se isso sumisse? Que tipo de decisões eu tomaria?
Signe é uma personagem fascinante. Adoro personagens mais velhos na ficção e logo me conectei com ela. Há momentos em que apenas a teimosia de Signe a sustenta e são vários momentos em que ela me pareceu bastante inflexível, turrona, incapaz de ceder a nada, nem a ninguém. Em outros ela me pareceu uma mulher muito corajosa, alguém que não abria mão de seus valores, que defendia o que acreditava ser certo, ainda que isso machucasse outras pessoas. Se alguém vai amá-la, como Magnus dizia que amava, então por que ele parecia incapaz de aceitá-la do jeito que ela era? Ao mesmo tempo em que ela não queria mudar por ninguém, ela parecia não acreditar que as pessoas pudessem mudar com o tempo e no final ela descobre que tudo mudou e como seu trabalho foi importante.
Gostei muito da oposição constante do enredo; enquanto Signe estava cercada de água desde a infância no fiorde e se sentia melhor nela do que em terra, David lutava contra a falta de água, a sujeira, a poeira, a sede e a desidratação. E este cenário de David não se instalou de uma hora para outra, sua família já convivia com ele havia algum tempo. É assim que as mudanças severas acontecem, aos poucos, saindo do evento raro para se tornar corriqueiro, onde a gente se acostuma e tolera porque precisa viver mais um dia.
Enquanto o final em aberto meio que deixa as coisas para a livre interpretação das leitoras, senti que o que importa aqui foi a jornada e não o fim. Porque, infelizmente, as mudanças climáticas globais já são uma realidade e o que o livro mostra não é algo restrito aos livros de ficção, já é realidade. O que Maja queria falar aqui, até onde compreendi, é sobre até onde vamos para defender e cuidar de quem amamos, o que podemos fazer em momentos de desespero para nos salvar.
Este livro é um pouco menor do que o livro anterior de Maja, com 352 páginas e foi traduzido por Kristin Lie Garrubo. Não encontrei problemas de revisão, diagramação ou tradução. O livro conta com várias passagens com termos náuticos que mereciam uma notinha de rodapé ou um glossário no final para ajudar quem lê a não se perder. E acho que faltou uma pesquisa para Maja quando uma personagem fala, sem ironias, que petróleo é feito de plantas (ele é feito de matéria orgânica marinha).
A vida toda é água, a vida toda era água, para onde quer que me virasse havia água, ela caía do céu como chuva ou neve, enchia os pequenos lagos nas montanhas, jazia como gelo na geleira, lançava-se pelas encostas íngremes em milhares de pequenos córregos (...); eu chamava meu mundo de Terra, mas pensava que na verdade deveria se chamar água.
página 16
Obra e realidade
Eventos climáticos extremos não são pontuais; eles agora acontecem o tempo todo. São Paulo ficou coberta de cinzas das queimadas da Amazônia em 2019. Dias atrás, uma erosão eólica cobriu várias cidades do interior de São Paulo com uma espessa camada de poeira, fruto da erosão do solo, desnudo para a monocultura e para pastos. As autoridades, ao invés de agirem para defender o que resta dos biomas, para resguardar as fontes de água e as terras aráveis, escolheram a inação e deixaram a mata queimar.Aprendemos na escola que o Brasil é um país farto em água potável. Outros países ficam escandalizados com a forma como lidamos com a água por aqui, já que temos fartura. Mas isso não quer dizer que essa água esteja igualmente dividida em todo o país. Não faz muito tempo que os reservatórios de água estavam operando com o volume morto para abastecer a grande São Paulo. Enquanto isso, o verdadeiro vilão ambiental do país, o agronegócio, desperdiça água, queima florestas e desnuda o solo sem nenhum pudor. O cenário que David e Lou enfrentam não está tão distante e para algumas pessoas é o cotidiano.
Maja Lunde é uma premiada escritora e roteirista norueguesa.
PONTOS POSITIVOS
Fatos reais
Distopia
Personagens irritantemente bem escritos
PONTOS NEGATIVOS
Pode ser lento em algumas partes
Fatos reais
Distopia
Personagens irritantemente bem escritos
PONTOS NEGATIVOS
Pode ser lento em algumas partes
Avaliação do MS?
Não vou dizer que este livro vai agradar a todo mundo. Quem espera grandes revelações e reviravoltas no final, pode acabar se decepcionando. O que conta aqui é a jornada, é a maneira que os personagens encontraram de seguir adiante em um mundo em constantes mudanças. Você vai aos extremos dos sentimentos em cada momento, em cada frase. Por isso, quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!Até mais! 💧
Não conhecia a autora, achei incrível essa distopia.
ResponderExcluirOlha, nem considero uma distopia. Os eventos dos quais o livro fala já estão acontecendo. Vinte anos no futuro é nada em termos ambientais. O livro tá mais para um realismo do que qualquer ficção científica.
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