Não é correto dizer que a pandemia pegou o mundo de surpresa. Ela nos pegou despreparados, porque essa não é a primeira, nem será a última pandemia que nos assolará. A única maneira de passar por isso é confiar na ciência, investir na vacinação, no correto tratamento dos doentes, isolamento social e tudo mais. Mas e quando as pessoas desconfiam da ciência? Aí a gente tem um cenário como da Revolta da Vacina.
O livro
Fortalea, 1904. Zelito vive sob a sombra do irmão e da pressão do pai para ser alguém na vida. Seu sonho é se tornar ilustrador e viver de sua arte, mas seu pai não confia muito nessa decisão e lhe dá um ultimato quando Zelito vai para o Rio de Janeiro: ele tem seis meses para ser alguém na vida. Assim Zelito procura emprego nos jornais, procurando por uma colocação como ilustrador, mas ninguém da bola para sua arte que, aliás, é até criticada por alguns.O Rio de Janeiro, na época, era um caldeirão prestes a explodir. O país ainda se ajustava ao novo sistema de governo, saindo de um império e inaugurando a república. Uma crise sanitária também se instalava. Tifo, varíola, tuberculose, peste bubônica, febre amarela, eram doenças endêmicas e que ceifavam vida todos os anos. A cidade não contava com saneamento básico e para uma crise social se instalava com a falta de casas para a crescente população da capital federal, composta principalmente por escravizados libertos, porém escorraçados da vibrante cidade. Tinha tudo para dar merda. E deu.
O motim que levou à revolta foi a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola, mas depois soube-se que havia outros interesses políticos por trás do levante. Mas com relação à vacinação, muita gente ficou indignada de ter que abrir as portas das casas para agentes de saúde e ainda por cima ter que ver as partes pudentes das senhoras. O projeto também exigia comprovantes de vacinação para a realização de matrículas nas escolas, para obtenção de empregos, viagens, hospedagens e casamentos.
No meio dessa zona toda está Zelito. E foi bem curioso o caminho que André tomou com esse personagem. Normalmente nós esperaríamos que ele fosse um herói, que estivesse do lado certo da história, mas Zelito não apenas está do lado dos revoltosos antivacinação como também é uma mala sem alça. Ele é intragável, grosso, metido a besta, que não tolera críticas e arruma confusão por bobagem.
Todo em preto e branco, a arte de André lembra aquela que vemos em cordéis e ficou perfeita. A impressão que dá é que as páginas foram todas carimbadas com as cenas dos quadros. Em sua trajetória, Zelito encontra várias pessoas, alguns interesses amorosos, tudo isso bem retratado pela arte quase cubista do autor. Se no começo a gente até sente uma certa empatia por Zelito, perto do final a gente tá torcendo para que ele se estrepe.
— Aqui diz que você foi vacinado contra varíola. Confirma isso?
— Confirmo. Afinal, não tive escolha, não é? A companhia impôs a vacina a todos os trabalhadores, como o senhor fez no rio, seis anos atrás.
— Você queria escolha para quê? Para morrer?
Página 119
No final do quadrinho temos um excelente posfácio do historiador Luiz Antônio Simas e charges da época, ironizando a postura de Oswaldo Cruz que, aliás, faz uma pontinha na jornada de Zelito.
A edição vem em capa dura e acabamento macio, com papel encorpado no miolo. Se você comprar pelo site da DarkSide, ganha brinde especial! Não encontrei problemas nos balões de texto nem na diagramação. É uma edição que não apenas nos faz pensar em uma revolta de mais de 100 anos atrás, mas que também nos faz refletir sobre esse mundo que atravessa neste momento uma pandemia.
Obra e realidade
Quando eu assistia a The Walking Dead, ficava irritada com certas atitudes dos personagens. Ficava revoltada de verdade com algumas burrices que eles faziam. Corta para 2020. É gente tomando água quente pra "matar o coronavírus" na garganta. É gente usando vermífugo para tratar um vírus, bem com um antibiótico. É gente sugerindo que é só uma "gripezinha", que não se deve fazer isolamento, que a vacina tem chip para controle mental e por aí vai. É aí que a gente percebe que as pessoas acreditam em absolutamente qualquer coisa, são altamente influenciáveis e podem colocar a vida em risco por bobagem. Exatamente como em The Walking Dead.Outra coisa que ficou bastante óbvia com a pandemia é que os mesmos erros cometidos nas anteriores foram repetidos. Em 1918 os médicos também receitavam cloroquina contra a influenza, pois havia um mito de que o medicamente serviria para tratar qualquer tipo de febre, já que seu componente principal tratava a malária, conhecida por suas febres. Também tinha, já naquela época, demagogo de discurso fácil indo contra as recomendações das autoridades de saúde e vendo as mortes subirem cada vez mais. Relatos da época contam sobre o silêncio das ruas e o martelar incessante das fábricas de caixões. Quando não se aprende nada com a história, ela se repete.
André Diniz é um quadrinista brasileiro. Começou a trabalhar com quadrinhos em 1994 com o fanzine Grandes Enigmas da Humanidade, que chegou a ter uma tiragem de 5.000 exemplares.
Pontos positivos
TraçoBem escrito
Revolta da vacina
Pontos negativos
Personagem malaViolência
Avaliação do MS?
Em um momento de tanto medo e desinformação, é preciso confiarmos na ciência e seguir as recomendações das autoridades de saúde. O que o quadrinho nos mostra é um cenário bastante conhecido e que vai se repetir na próxima pandemia, com a ignorância sendo abraçada por muitos. Gostaria de dizer que nós aprendemos com a história, mas infelizmente não é verdade. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!Até mais! 💉
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