Ganhei esse livro de presente de um leitor assíduo do blog da capitã. E agradeço imensamente, pois é um livro assustadoramente atual, ainda que violento, mas que não deve em nada para a realidade. O deserto do real é ainda mais árido e perigoso do que a ficção. Ursula é ácida e alfineta de maneira certeira o colonialismo e a violência contra os povos nativos.
O livro
O planeta Athshe, 27 anos-luz de distância do nosso sistema solar, foi colonizado pelos seres humanos. Com a escassez de madeira na Terra, Athshe é um paraíso intocado de onde se retira madeira e se desmata de forma voraz. Os habitantes originais do planeta, a quem os humanos, pejorativamente, chamam de creechies, são humanoides de pouco mais de um metro de altura, cujos corpos são cobertos por pêlos verdes sedosos e grandes olhos. Os creechies (neologismo para "criatura"), ou athsheanos como de fato se chamam, viviam em plena paz, até a chegada dos seres humanos, ou yumanos como os chamam.Sabemos bem pelas aulas de história o que aconteceu com os povos nativos quando uma força superior chegou nas novas terras. E em Athshe não foi diferente. Os athsheanos foram escravizados, ainda que os humanos os chamem de Funcionários Autóctones Voluntários — um eufemismo para escravos. Como os athsheanos desconheciam a guerra, a violência e o conflito, os humanos não encontraram resistência entre a população nativa.
Assim, os athsheanos sofrem todos os tipos de abuso imagináveis. Enquanto servem aos humanos, eles são segregados em currais - semelhante às senzalas - as fêmeas são violentadas pelos homens, que aguardam a chegada de companhia feminina em breve, enquanto os administradores da colônia acham que estão fazendo um favor ao povo nativo, sem reconhecer no entanto que é um sistema de escravidão. Parece familiar?
Apesar das diferenças físicas, nos reconheceram como membros de sua espécie, como homens. No entanto, não reagimos como membros da espécie deles deveriam reagir. Ignoramos as reações, os direitos e as obrigações da não violência. Matamos, estupramos, dispersamos e escravizamos humanos nativos, destruímos suas comunidades e derrubamos suas florestas. Não seria surpresa se eles decidissem que não somos humanos.
Página 63
Poucos humanos se interessaram em conhecer melhor os athsheanos. Entre eles está Raj Lyubov, único ser humano a aprender o idioma athsheano e a se tornar amigo do nativo Selver. Selver terá papel crucial no enredo, pois sua esposa foi estuprada pelo capitão Don Davidson, a figura mais repulsiva do livro inteiro e acabou morrendo após a violenta agressão. Se antes os athsheanos não conheciam a violência e a vingança, agora eles tiveram uma aula em primeira mão e é Selver quem erguerá esse mundo contra os humanos. Don é a personificação do machão violento que reitera sua própria insignificância através da violência, um bruto que só sabe falar com uma arma na mão.
Floresta é o Nome do Mundo é o terceiro livro do Ciclo Hainish, mas apenas dois livros dessa série foram anteriormente publicados por aqui: A mão esquerda da escuridão e Os despossuídos, ambos pela editora Aleph. Quem tem o privilégio de ler em inglês pode acompanhar a história inteira do ciclo, mas quem depende das publicações em português acaba com a história picotada pela falta de continuidade. Seguindo o estereótipo do alienígena no passado, um povo chamada Hain colonizou vários mundos da galáxia, incluindo a Terra. A distância e o tempo que levava para viajar entre os mundos acabou dificultanto o contato e cada povo acabou se adaptando a seu planeta. Com o fim da civilização Hain, as colônias esqueceram que os outros planetas existiam.
Foi uma leitura dolorosa, amarga, triste, que em vários momentos me lembrou Enterrem meu coração na curva do rio, de Dee Brown. É o relato de um povo que resiste ao seu invasor usando das táticas aprendidas com eles. Assim como os nativos aprenderam a usar rifles e espingardas contra os pioneiros, os athsheanos aprendem a usar as armas humanas. Ainda que em outros livros da mesma série o contato alienígena aconteça com alguns percalços, eles acabam acontecendo sem tanta violência e desconfiança como o que aconteceu aqui. Tanto que surge uma Liga de Todos os Mundos, brevemente mencionada em Floresta é o Nome do Mundo.
O universo criado e descrito por Ursula neste livro é soberbo, tanto que acredito que o livro poderia ser maior, com mais informações, mas também entendo a escolha de um tamanho mais modesto para aqueles que o lerão como um livro único e não como parte de um escopo maior. Originalmente publicado em 1972, na antologia Again, Dangerous Visions, a novela foi publicada como livro apenas em 1976.
Por ser um livro curtinho, a leitura é feita de maneira até rápida, mas não é fácil passar por certas partes que não fogem da realidade dos povos oprimidos e escravizados. A tradução foi de Heci Regina Candiani e encontrei alguns probleminhas de revisão que não chegam a atrapalhar o bom andamento da leitura.
Não sei o que é a ❝natureza humana❞. Talvez deixar descrições daquilo que exterminamos faça parte da natureza humana...
Página 102
Obra e realidade
Le Guin era uma forte opositora à Guerra do Vietnã. A guerra estava em seu auge na época do lançamento da antologia Again, Dangerous Visions, e o tom de crítica ao militarismo é alto nesta novela. A tensão constante entre lados opostos, a violência e a não violência. Ainda que Raj Lyubov seja bem intencionado, querendo uma resolução para o conflito vivido, ele sabe que uma hora precisará tomar partido e que pagará por isso.A crítica ao uso de drogas da parte dos soldados norte-americanos no Vietnã também é evidente, já que os colonizadores também se valem de drogas alucinógenas, algo que é corriqueiro entre eles e até incentivado para lidar com a tensão de estarem tão longe de casa e sem mulheres. O colonialismo é fortemente rebatido ao longo de toda a leitura. Os humanos não conseguem enxergar nos athsheanos seres inteligentes, dotados de uma cultura complexa. São vistos apenas como animais, assim como os povos nativos, principalmente os africanos, foram vistos na Terra por muito tempo.
Também é um livro como uma pegada ecológica muito evidente. Enquanto os povos nativos precisam de sua floresta para sobreviver e reconhecem a importância de sua manutenção, os humanos chegaram para desmatar e destruir, sem se importar com quem fica pelo caminho. Tanto que para Davidson a floresta é apenas desperdício de espaço, tal qual um certo governo sul-americano que vem destruindo suas leis ambientais e acabando com sua política ambiental por puro capricho.
Ursula K. Le Guin foi uma premiada escritora norte-americana, autora de vários livros de ficção especulativa. Ela faleceu em 2018.
Pontos positivos
AthsheanosPegada ecológica
Crítica ao colonialismo
Pontos negativos
Erros de revisãoAcaba logo
Violência
Avaliação do MS?
Não é uma leitura fácil devido à violência com a qual os athsheanos são tratados. Ao mesmo tempo em que é repulsivo, sabemos também o quanto é real, pois isso acontece aqui na Terra também. A mensagem bem clara do livro é que, mesmo que tenhamos capacidade de colonizar outros planetas, nossos maus vícios irão junto. Quatro aliens e uma forte recomendação para você ler também!Até mais! 🍂
Resenha maravilhosa. Eu já tinha lido esse livro em 2010, uma edição em formato bolso, de uma editora portuguesa (acho que era a editora Europa-América). Não sabia que tinha saído a edição pela Morro Branco (do qual já li Kindred).
ResponderExcluirLendo essa resenha eu me recordei de uma reflexão que eu tive após terminar a leitura de Floresta é o Nome do Mundo há onze anos atrás. Se essa obra magnífica fosse transformada em filme nos dias de hoje, não faltariam os desavisados que acusariam a obra de estar imitando "Avatar", de James Cameron.
Na verdade, é precisamente o contrário. O filme de Cameron já foi acusado de plagiar trechos de várias obras, de Pocahontas, passando por Dança com Lobos até Call me Joe, de Poul Anderson. Não sei se essas acusações tem fundamento (apesar de admitir que as semelhanças são inegáveis), mas de qualquer forma, o livro da Le Guin seria mais uma obra a ser acrescentada a essa lista...
Quero reler Floresta é o Nome do Mundo. Obrigado por essa resenha!
Esse livro é lindo! O olhar sobre o Outro pode dizer muito sobre nós. Potente, quase uma etnografia.
ResponderExcluirObrigado pela resenha.