O aviso da Editora Wish sobre The Five é: esse livro vai mudar o que você pensa sobre Jack, o Estripador. O infame assassino em série que atacou a região de Whitechapel, em Londres, ainda alimenta a imaginação de muita gente, já que seu caso nunca foi solucionado. Sobram suspeitos, faltam evidências. Mas e quanto às vítimas? Quem eram elas? O senso comum alardeia desde a época dos crimes que eram "apenas prostitutas". Mas como The Five nos mostra, a história não é essa.
O livro
Polly, Annie, Catherine, Elizabeth e Mary Jane são nomes que muitos leram apenas como notas de rodapé no caso dos assassinatos perpretados por Jack, o Estripador. Elas eram prostitutas, pronto e acabou; o que realmente interessa para essas pessoas é a identidade do assassino em série que tornou a região de Whitechapel famosa. Turistas ainda hoje visitam as ruas do distrito, refazendo os passos de Jack. Mas elas dificilmente param para pensar nas cinco mulheres brutalmente mortas.Essas cinco mulheres eram mulheres pobres da classe trabalhadora. Com exceção de Mary Jane, a última vítima, de quem sabemos pouco e o pouco que sabemos aponta que ela, ocasionalmente, precisou se prostituir, as outras mulheres tiveram filhos, foram casadas ou tiveram companheiros, seguindo o que se esperava para uma mulher, mas a vida para as mulheres da classe trabalhadora não apenas era imersa na pobreza, era também imersa no preconceito, na misoginia e no fato de uma sociedade vitoriana vê-las como dispensáveis, supérfluas.
Os assassinatos em Whitechapel revelaram as condições horríveis em que os pobres do distrito viviam. Em uma época sem assistência social e a que existia colocava nos pobres a culpa por seus infortúnios, em um mundo sem atendimento básico de saúde gratuito, com cortiços apertados e insalubres, sem saneamento básico, com eclosão de escarlatina, de tifo e varíola e casos cada vez mais comuns de tuberculose, onde a mortalidade infantil podia alcançar até 33% em determinados locais de Londres, a mão de obra da classe trabalhadora era mal alimentada, miserável e muitas vezes mal tinha um teto sobre a cabeça.
Morar em Londres ainda hoje é estupidamente caro, mas na era vitoriana era impossível manter uma casa com os parcos salários que os pobres recebiam. Por isso era comum que famílias dividissem com outras quartinhos e salas, onde não havia privacidade, com pouca ventilação, onde crianças e adultos conviviam. Mulheres da classe trabalhadora não tinham perspectiva de ascensão social. Elas eram educadas para se tornarem empregadas, no máximo governantas, o que lhes ensinaria os dotes básicos para se tornarem esposas.
Mas e o que aconteceria com elas caso seus maridos morressem? Ou se elas quisessem se separar deles? A lei não existia para ajudar as mulheres em tais condições. Entre as cinco mulheres vítimas do assassino não foram raros os casos em que elas tiveram que abandonar seus maridos e buscar ajuda nas ruas. Outras ficaram tão entorpecidas pela vida brutal e a perda constante de filhos que buscaram conforto na bebida. Vícios eram vistos como uma falha moral e o único tratamento possível na época eram internações em instituições religiosas que tentavam fazer a pessoa se "arrepender" de seus "desvios". Pela leitura da biografia levantada por Hallie, acho inclusive que seja possível que essas mulheres pudessem ter transtornos psiquiátricos nunca tratados e buscavam na bebida o alívio que a vida e as pessoas nunca poderiam fornecer.
(...) a polícia estava tão focada em suas teorias sobre a escolha de vítimas do assassino que não conseguiu concluir o óbvio: que o Estripador atacava mulheres enquanto dormiam.
Página 30
Mulheres separadas de seus maridos e de suas famílias, que tiveram relações sexuais e filhos fora de um casamento, mulheres pobres que viviam nas ruas, que tinham trabalhos ocasionais tinham seu caráter questionado pela sociedade e, principalmente, pela polícia. E se o caráter de uma mulher está comprometido eles logo supunham que havia também imoralidade sexual. Sem um homem, uma mulher não tinha credibilidade, nem proteção ou propósito na vida. A sociedade vitoriana confundia mulher machucada com mulher fracassada. É por isso que muitas mulheres, com essa misoginia internalizada por uma sociedade amplamente misógina, procuravam parceiros com quem pudessem dividir um quarto e buscar proteção. Esqueça aquela visão de mulheres castas das classes superiores da era vitoriana se casando com homens ricos e vivendo em palacetes. Polly, Annie, Catherine, Elizabeth e Mary Jane representam a Londres vitoriana de fato e toda a sua violência cotidiana contra mulheres.
A pesquisa de Hallie está perfeita. Ela encontrou fatos e dados que nos dão uma visão imersiva sobre a Londres vitoriana e como as pessoas viviam em condições horrendas. Algo a ser dito é que Hallie se concentrou apenas nas cinco mulheres e em suas vidas. Não há detalhes sangrentos sobre os crimes do Estripador. Sobre isso a literatura tem de monte. O que Hallie queria mostrar era a vida pregressa das vítimas como seres humanos, como pessoas que viveram, amaram, choraram e se sentiram perdidas, e mostrar que eram, de fato, gente. Existem alguns lapsos porque parte dos arquivos do caso e o levantamento feito pela polícia se perderam. A autora avisa que em alguns casos há informações desencontradas, mas também informa quais são e quais fatos são mais aceitos.
A edição da Wish é lindíssima, em capa dura e papel amarelinho. O trabalho gráfico interno é perfeito e a capa segue o padrão da capa original britânica, em preto e branco. Encontrei alguns probleminhas de revisão e diagramação, que não chegam exatamente a atrapalhar a leitura. Na página 351 há claramente uma diferença no tamanho da fonte. E deveria haver uma notinha de rodapé explicando que Bombaim (Mumbai) e Madras (Chennai) não usam mais esse nomes. No começo há um mapa de Whitechapel com a localização dos corpos, bem como algumas fotos e ilustrações da época. No final contamos com uma lista dos objetos encontrados com quatro das cinco vítimas, além de bibliografia e índice.
Insistir que Jack, o Estripador, matou prostitutas também torna a história de uma série grotesca de assassinatos um pouco mais palatável. Assim como ocorria no século XIX, a noção de que as vítimas eram ❝apenas prostitutas❞ procura perpetuar a crença de que há mulheres boas e más; madonas e prostitutas. Sugere que existe um padrão aceitável de comportamento feminino e que as que se desviam dele devem ser punidas. Igualmente, ajuda a reafirmar o duplo padrão, exonerando os homens dos erros cometidos contra essas mulheres.
Página 375
Obra e realidade
Nunca me interessei por Jack, o Estripador. As poucas imagens dos corpos das vítimas fizeram meu estômago embrulhar, então eu nunca tive real interesse nele. Mas assim que soube que a Wish estava trazendo esse livro, ele logo me interessou. Não apenas a autora deu uma história aos nomes das vítimas, ela também reconstruiu a Londres que elas conheciam e onde viveram, nos dando toda uma perspectiva que nunca ninguém se preocupou em fornecer. Essas mulheres não foram apenas corpos retalhados, foram pessoas desamparadas e que não tinham com quem contar. A sociedade falhou com elas e a história seguinte também ao retratá-las como "apenas prostitutas".Ainda hoje quando um crime acontece com uma mulher, muitos saem em busca de fatos que expliquem a violência. A roupa que usava, a hora em que aconteceu, se bebeu, se provocou, se pediu. Ou seja, os 132 anos que nos separam dos crimes do Estripador nos mostram como pouca coisa mudou em relação à forma como a sociedade ainda culpa mulheres pelas violências contra elas cometidas e como ainda busca a "vítima ideal". Na época do Estripador, algumas pessoas avaliaram a "beleza" das vítimas, bem como se preocupavam que um assassino atuando na área pobre poderia "empurrar essas mulheres" para as ruas de "distritos decentes". Ninguém se importou com elas, nem como elas foram parar em Whitechapel. A linha entre respeitabilidade e desgraça, entre sobrevivência e desespero é muito tênue.
Hallie Rubenhold é uma historiadora e escritora britânica. Seu trabalho foca na história social dos séculos XVIII e XIX e na história das mulheres. Trabalha também como consultora histórica de TV e de cinema.
Pontos positivos
Biografias
Bem pesquisado e escrito
Resgate histórico
Pontos negativos
Pequenos problemas de revisão
Biografias
Bem pesquisado e escrito
Resgate histórico
Pontos negativos
Pequenos problemas de revisão
Avaliação do MS?
Cheguei ao final desse livro em prantos em uma madrugada de abril. A história dessas mulheres é triste. Nâo apenas elas não mereciam o destino que tiveram nas mãos de um assassino, como não mereciam a vida que levaram. Elas já começaram em desvantagem, pois nasceram mulheres e pobres. Mulheres que desviavam no comportamento padrão exigido pela sociedade eram vistas como dispensáveis, alguém que deveria ser posta em seu devido lugar. Uma mulher desacompanhada na rua poderia ser presa sob a alegação de prostituição apenas por estar desacompanhada. A autora dedicou seu livro a essas cinco mulheres. Hallie devolveu suas dignidades, há muito tempo ignorada. Não é, nem deve ser, uma leitura fácil. Uma obra essencial na sua estante.Até mais!
As vítimas de Jack, o Estripador, nunca foram ❝apenas prostitutas❞; elas eram filhas, esposas, mães, irmãs e companheiras. Elas eram mulheres. Elas eram seres humanos e, certamente, isso basta.
Página 378
Também nunca me interessei por Jack, o Estripador, mas a ideia de ler sobre a história dessas mulheres me fez desejar esse livro. Se a tua resenha já foi dolorosa, imagino como deve ser a leitura. Mas quero fazê-la, acredito ser necessário.
ResponderExcluirÓtimo texto <3
É um livro excelente! Francamente, acho que o Jack nunca existiu. Pra mim, foi um mito criado unicamente para vender jornais. rsrs
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