Muita gente ainda tem uma visão da ficção científica como sendo apenas escapismo, apenas entretenimento. Veja o Prêmio Jabuti, que criou uma categoria de "romances de entretenimento" onde entraram livros de FC e Fantasia (significa que os outros são chatos?). Mas o que muita gente apenas enxerga como motores de dobra e alienígenas é também um gênero rico de possibilidade ilimitada. É aí que entra a ficção visionária.
Tal como o afrofuturismo é todo um movimento artístico que vai da literatura à música, das artes plásticas ao cinema, a ficção visionária também passa pela ficção científica, fantasia, realismo mágico, horror em suas mais variadas formas. É um tipo de literatura que nos ajuda a compreender as dinâmicas de poder e que imagina formas de imaginar cenários futuros mais justos.
O termo foi cunhado pela poeta, abolicionista, escritora e educadora Walidah Imarisha, co-editora da coletânea Octavia's Brood: Science Fiction Stories from Social Justice Movements. Ela queria que a ficção científica e todos os outros gêneros especulativos já mencionados pudessem se diferenciar da ficção mainstream, que tem o costume de replicar as desigualdades em um futuro próximo ou distante. O que Walidah quer é que as possibilidades de se criar um mundo melhor existam na literatura de ficção especulativa e que possam mostrar mundos possíveis.
O mundo está em crise. Como se não bastasse a pandemia, ainda temos as crises nas democracias, a eleição de demagogos e fascistas e as desigualdades sociais em ebulição. Este é o momento perfeito para analisar a importância e as técnicas para se conceber, construir e organizar futuros melhores. Walidah usou o termo pela primeira vez em 2010, em um texto para a Left Turn magazine, onde ela fala sobre o conceito de recriar nosso mundo de maneira a criar uma mudança social duradoura e como forma de se diferenciar das distopias e mundos pós-apocalípticos que, em geral, reproduzem as políticas atuais.
Ficção visionária não é uma utopia, pois ela não imagina sociedades perfeitas e totalmente igualitárias. Utopias, distopias, são todas experimentos, são maneiras de se experimentar realidades diferentes da nossa de maneira a inspirar, até mesmo alertar. A utopia plena, bem como a distopia plena, não existem, pois não existem seres humanos perfeitos. A própria Octavia Butler achava as utopias ridículas, já que nós nunca teremos seres e sistemas perfeitos. O que melhor podemos fazer é mitigar os problemas dos sistemas.
A partir do momento em que uma pessoa imagina ou pensa em algo diferente dentro do seu próprio mundo, a distopia deixa de existir, pois a possibilidade para a mudança agora se faz presente. Essa mudança, essa posibilidade de mudança, é o núcleo da ficção visionária, pois é a partir da mudança de paradigmas que começamos a entender as estruturas de poder existentes e a imaginar maneiras de construir mundos mais justos.
É interessante analisar nossa própria história e ver quantas pessoas estavam colocando em ação a ficção visionária. Em algum momento da história uma determinada mudança social foi considerada irreal por muita gente, em especial para as pessoas no poder. Quando mulheres marcharam pelas ruas exigindo o direito do voto, aquilo era uma ficção visionária. Quando negros se armaram e lutaram contra as amarras da escravidão ou quando marcharam pelas ruas protestando contra a estrutura assassina da polícia, isso é uma ficção visionária, pois a possibilidade de mudança surgiu. Foram décadas escrevendo, interpretando, debatendo e fomentando ideias que mudem os sistemas e estruturas atuais para criar um mundo menos desigual e tudo explodiu com o movimento do Black Lives Matter ou com as mulheres marchando no movimento do #MeToo.
Na ficção visionária, começamos com a pergunta: qual é o mundo que queremos?
Walidah Imarisha
Não é possível construir algo sem imaginá-lo antes, portanto é preciso criar espaços onde podemos estender ao infinito as possibilidades e entender o que é possível de ser feito. Nós criamos as estruturas de poder, então podemos também destrui-las. A ficção especulativa, como um todo, é este imenso laboratório de possibilidades ilimitadas e precisa ser usado para se pensar o melhor.
O #MeToo, o Black lives matter, são todos movimentos de ficção visionária (e como eles incomodam os poderosos). São movimentos que surgiram do desejo de realizar mudanças concretas nas estruturas de poder existentes pelo qual as pessoas foram às ruas, protestaram e marcharam. É imaginar um mundo sem pobreza, sem prisões, sem desigualdades. Ficção e ação não estão separados, mas são parte de um mesmo comando que vai levar uma nova maneira de pensar às pessoas.
E é preciso ser irreal. Muita gente não curte Star Trek (também uma ficção visionária), pois acha irreal um mundo sem doença, pobreza e miséria. Pois é justamente por isso que precisamos da Federação e da Frota Estelar. Precisamos extrapolar nossos pedidos por mudanças. Quando os governantes nos dizem que precisamos ser "realistas" em nossas demandas, eles apenas estão usando um método de controle social, nos impedindo de imaginar, de criar, de querer e conceber mundos melhores. O sonho impossível é a única coisa que está entre o aqui e agora e o futuro que queremos.
Até mais!
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Ótimo texto!
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