Dentre os capitães da Frota Estelar que conhecemos, apenas Ben Sisko cria seu filho e ainda mantém seu posto, na estação de Deep Space Nine. Enquanto Picard já expressou mais de uma vez seu medo e aversão a crianças e lamentou o quanto era perigoso levar a família consigo para missões no espaço profundo, Sisko é um pai viúvo desde a Batalha de Wolf 359, que tinha suas dúvidas sobre seu posto e sobre a unidade familiar em DS9. O que a série nos mostrou, por sua vez, foi uma família Sisko afetuosa e orgulhosa de suas origens, mesmo com todas as dúvidas e medos de Sisko.
Quando Deep Space Nine estreou, a audiência de Star Trek estava acostumada com a vida solitária de seus capitães. Por mais que Kirk tenha passado o rodo em metade da galáxia, tanto ele quanto Picard não constituíram família. Kirk nem conviveu com seu filho. Então quando Benjamin Sisko e seu filho adolescente Jake apareceram na televisão, isso se mostrou uma virada interessante nos estereótipos dos capitães da franquia.
Mais que isso, Ben quebra um arquétipo muito comum no imaginário norte-americano, que é a do pai ausente e a desagregação familiar negra. Ainda que faça parte de uma mitologia falsa, muitas vezes associada à criminalidade e violência policial - quando a culpa é do racismo sistêmico e estrutural da sociedade - ele ainda é persistente. Existem outras boas representações paternais, como o tio Phil, em Fresh Prince of Bel-Air (Um Maluco no Pedaço), mas dentro da ficção científica esta talvez seja a mais importante e uma das mais positivas relações entre pai e filho.
A estreia de DS9 ocorreu em um momento político conturbado, na esteira dos distúrbios em Los Angeles, em 1992, após a absolvição de dois policiais brancos e um latino no espancamento de Rodney King, e do governo de Ronald Reagan, notório por suas falas racistas e por propagar preconceito contra a população negra. DS9, em seus sete anos, abordou guerra, preconceitos nas mais variadas formas, as consequências dos conflitos e formas únicas de se relacionar. Tivemos reflexões sobre capacitismo, pansexualidade, mas o mais notório em toda a série é a afetuosidade entre Benjamin Sisko (Avery Brooks) e seu filho adolescente, Jake (Cirroc Lofton).
Ben e Jake são bastante unidos, ainda mais depois da tragédia que levou a esposa de Ben em uma batalha contra os Borgs. Isso se nota desde o começo, no episódio piloto, quando Sisko é designado para a estação. Ao longo das sete temporadas vemos algo que se vê pouco não só na televisão como também na realidade: pai e filho são extremamente afetuosos um com o outro, se abraçam, se beijam, deixam claro o quanto são uma família unida e comprometida. Vemos isso também com a figura do avô de Jake, Joseph Sisko, (Brock Peters), chef de cozinha e dono de um restaurante de cozinha Creole e Cajun em Nova Orleans.
Aliás deve-se apontar também o orgulho de suas origens e de suas tradições. A cultura negra é apagada quando celebrada por negros e celebrada quando é usurpada por brancos. A escravidão tentou suprimir tudo o que vinha das culturas e tradições originais, mas a família Sisko é orgulhosa delas. Basta ver a decoração do alojamento de Ben e Jake na estação, nas roupas coloridas que eles usam, especialmente Ben, quando está de folga, as máscaras tribais nas paredes e os tecidos de padrões intrincados e de cores fortes. Há orgulho e celebração de suas origens, há orgulho de serem quem são.
Outra coisa que é evidente: tanto Ben quando Jake não tiveram "a conversa" com seus pais, aquela que educa jovens negros a como se comportar diante da polícia, de falar baixo, de não encarar, de como manter uma postura não ameaçadora. A sociedade humana em Star Trek foi pacificada e acabou com os preconceitos. Neste mundo os negros não precisam temer a polícia, não precisam esconder suas origens. Negros não precisam esconder suas emoções, nem serem cordiais o tempo todo. Sisko deixa bem evidente que não gosta de Picard logo no episódio piloto.
A química instantânea entre os atores têm explicação: quando Cirroc Lofton foi escalado para interpretar Jake, seus pais tinham acabado de se divorciar. Avery Brooks logo se tornou uma figura paterna importante para o jovem ator e Cirroc já comentou em convenções de DS9 o quanto a figura de Avery e de Ben se tornaram modelos a se seguir e a se admirar na vida real. Convivendo por tantas horas ao dia durante sete anos durante as gravações é até natural que isso tenha acontecido e obviamente a audiência notou tal relação.
Joseph e Ben Sisko |
Nós acompanhamos o crescimento de Jake enquanto ele deixa de ser um adolescente e se torna um jovem adulto emotivo, inteligente e empenhado. Ben é um capitão dedicado, firme quando precisa, um soldado lutando em uma guerra, mas seu sorriso se abre na presença do filho por quem se derrete. Quando Jake decide se tornar um escritor e não entrar para a Frota Estelar, seu pai o apoia e é seu principal leitor. A equipe criativa por trás de DS9 sempre soube que a alma do personagem de Ben era o amor por seu filho Jake e os roteiros nunca deixaram isso de fora. O afeto entre pai e filho são espontâneos, acontecem o tempo todo, não é algo para se envergonhar ou esconder. Em um mundo que cobra frieza e ausência de emoções como comportamento padrão masculino, foi bastante desafiador mostrar afetuosidade entre Ben e Jake na TV dos anos 1990.
Um dos motivos para Avery Brooks aceitar o papel de Ben Sisko foi a oportunidade de se conversar sobre ancestralidade e sobre gerações sucessivas e por mostrar um pai negro criando seu filho, sendo uma imagem positiva para ele. Nós vemos avô, pai e filho interagindo no restaurante, conversando amenidades, em um futuro onde o estabelecimento não vai ser invadido por policiais brancos atirando a esmo. Vemos um pai criando um filho em um ambiente seguro onde seu filho quer e pode ser escritor sem que ninguém lhe diga que isso é impossível. DS9 além de todos os assuntos que tratou em sete temporadas, fala também de possibilidades, de você querer e poder ser o que quiser. Ben é um capitão da Frota Estelar, Jake é um escritor, Joseph é chef de cozinha, todos com muito orgulho de quem são.
A Joseph, Ben e Jake Sisko é permitido amar, ser amado, sorrir, chorar, escolher a profissão que quiser, celebrar sua negritude e sua cultura, se apaixonar, pois este é um universo onde as diferenças caíram e não fazem mais sentido. Imagine ter que explicar aos vulcanos, quando chegaram à Terra pela primeira vez, que mulheres e negros ganham menos por serem apenas quem são? Como explicar que um gay apanha na rua apenas por andar de mãos dadas com seu amor?
O relacionamento de Joseph, Ben e Jake é tocante, revolucionário e especial. A química entre os atores funcionou perfeitamente bem e os roteiros foram bem escritos, nos dando uma representação única que precisamos ver mais dentro da ficção, inclusive na ficção científica. Star Trek não mostra como a humanidade será no século XXIV, ela nos mostra um mundo que deveríamos almejar, um que deveríamos ter em mente. A família Sisko não esqueceu o passado nem a complexidade dos relacionamentos humanos, ela foi além deles e nos deu uma das melhores representações familiares na TV em muito tempo.
Vida longa e próspera! 🖖🏾
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Ahhh, esse é um dos seus textos mais lindos, Sybylla! Eu amo a sua sensibilidade e também a de Stark Trek. Acho que caminham juntas, não é mesmo? Você sempre me faz querer reassistir DS9 com um olhar mais maduro para identificar essas nuances, porque só assisti quando era criança. Amo demais o seu blog ♥
ResponderExcluirNhaaaa, obrigada por ser tripulante na nave da capitã! ♡
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