A escrita indomada de Angela Carter

Angela Carter é uma das mais celebradas escritoras britânicas. Quase desconhecida no Brasil e tendo caído em um certo ostracismo após sua morte, a maioria de suas publicações são suas coletâneas de contos de fadas, mas Angela também escreveu romances, crônicas e poesias. Dona de um estilo selvagem, capaz de criar rachaduras na literatura britânica que contaminaram outros autores, Angela se tornou a "fada madrinha" dos contos de fada e do progonismo feminino indomado.
A escrita indomada de Angela Carter

Angela Carter tem muitos fãs famosos. Neil Gaiman, Salman Rushdie, Ian McEwan e Kazuo Ishiguro, todos eles se beneficiaram da escrita da autora, tida por alguns como uma das maiores escritoras do século XX. Cedo demais Angela partiu devido a um câncer de pulmão, aos 51 anos, mas sua influência pode ser sentida até hoje quando contos de fadas são reinterpretados e resgatados de suas origens.

Contos de fadas estão associados às crianças, aos filmes da Disney, à franquia das princesas com todo o brilho que elas evocam. Mas antes de povoarem a imaginação infantil e de preencher as estantes das bibliotecas para crianças, os contos de fadas eram causos que se contava à noite para divertir os convivas, histórias que eram originalmente orais e que depois sofreram modificações conforme eram repetidas. Quem conta um conto aumenta um ponto, certo?

Angela começou a trabalhar como jornalista, mas depois estudou literatura inglesa pela Universidade de Bristol, dando aulas, palestras, viajando o mundo, conhecendo lugares nos quatro cantos do globo, colhendo narrativas e colecionando histórias. Escreveu para vários veículos de comunicação importantes como o The Guardian, com vários de seus trabalhos adaptados para o teatro, cinema e televisão, como A Companhia dos Lobos (1984).

Talvez a falta de apreciação de Angela em tempos modernos se deva ao fato de que Angela estar à frente de seu tempo. Muitas pessoas acabam incompreendidas em sua época e são redescobertas posteriormente. Será que veremos as obras de Carter daqui algum tempo, ressignificadas como seus contos ou esse tempo já passou? Poderia estar ainda num futuro próximo?

Em alguns momentos, sua escrita e sua forma de narrar o feminino me lembraram o estilo de Gillian Flynn. Ambas colocam suas mulheres em situações moralmente questionáveis, muitas vezes submissas à sua própria crueldade, fugindo do estereótipo da mocinha indefesa que precisa de um príncipe. São mulheres selvagens e capazes de qualquer coisa caso isso lhe seja favorável. O feminino das autoras pode ser feio, cruel e selvagem. Estamos tão acostumadas a uma visão do feminino pautada na pasteurização dos desejos femininos, de sua submissão à figura masculina, que ver uma mulher dotada de selvageria parece contrariar tudo o que nos ensinaram a respeito do que é ser mulher. Mesmo que não agrade a todos, acho ótimo poder subverter a ordem das coisas.

Contos de fada ganharam um status de metáfora para a fragilidade da civilização, onde o terror se descortina nas bordas e nas sombras, onde você não precisa, necessariamente, suspender a descrença. Ao começar a ler um conto com a famosa abertura de "Era uma vez..." somos impelidas a crer que aquilo não é nem foi real, que cabe em nossas vidas o fantástico e o mágico, sem que eles percam o valor narrativo.

Transmitidos ao longo de gerações por incontáveis vozes, em geral das classes mais baixas, voltadas aos "causos" e acontecimentos extravagantes do dia, é interessante notar como eles se mantém atrelados à atualidade. Possivelmente acontece por tratar dos dilemas humanos mais básicos e que ainda continuam a nos assombrar e a nos perseguir, como a capacidade de encontrarmos bondade e maldade nas pessoas, que nunca são definidas apenas por uma característica.

Recontar os contos de fadas e trazer para a palavra escrita o que antes estava solto nos ventos da transmissão oral, deu a Angela a oportunidade de contar aos adultos toda a selvageria dos contos originais, de registrar no papel o que antes eram apenas memórias das pessoas, de recriar o imaginário popular. Histórias são uma bagagem leve que transportamos conosco ao longo do tempo. Talvez falte aos adultos aquele mesmo olhar maravilhado que as crianças fazem quando ouvem "Era uma vez...". Angela certamente gostaria disso.

Até mais! 🧚‍♀️

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Comentários

  1. Cheguei aqui após ler "Extravios" do Mariel Reis, cuja autora ele homenageia.

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