O que a ficção científica não é

Uma das coisas mais comuns que se fala sobre a ficção científica é que ela "prevê o futuro" e eu tenho um pico de pressão cada vez que leio ou ouço alguém falar isso. E toda vez que eu falo a respeito, dizendo que não, ficção científica não prevê nada, muito menos tem essa obrigação, chovem reclamações e gente vindo me explicar que "como assim não é?", "olha o modo como vivemos, parece 1984", "mas nós estamos no mundo de O Conto da Aia!". Bem, você até pode identificar uma série de similaridades entre enredos de ficção e o nosso mundo, mas a FC não previu isso.

O que a ficção científica não é


Não sou uma profeta. Vamos agora nos livrar dessa ideia. Profecias são sobre o agora. Na ficção científica, elas sempre foram sobre o agora. Sobre o que mais seria? O futuro ainda não existe. Existem muitas possibilidades, mas nós não sabemos quais delas se concretizarão.

Margaret Atwood

Previsão
Quando Mary Shelley sentou para escrever seu conto de terror ela não tinha em mente discussões sobre bioética, sobre a construção da humanidade e empatia. Ela só queria ganhar uma aposta. Ainda assim, Frankenstein ecoa em obras pelo mundo todo, sempre renovando discussões importantes para a FC e para a sociedade. Existem vários erros na ciência de sua obra, pois era baseada no que ela conhecia na época, como o fato de ela ignorar a incompatibilidade sanguínea, a rejeição de órgãos e tecidos e o caráter mítico da eletricidade. E optamos por ignorar tudo isso para entender a genialidade de sua obra. É uma escolha nossa suspender a descrença e curtir o livro.

É isso o que a ficção científica faz. Ela suspende a nossa descrença e nos dá ferramentas para trabalhar qualquer tema e assunto. Mary Shelley não fez previsões, ela apenas sentou e contou uma história. Ficção científica não é sobre o futuro; ela usa o futuro como uma convenção narrativa para apresentar distorções significativas do presente. E ainda que algumas dessas distorções possam ser semelhantes ao que vemos no mundo real, isso não é uma previsão. É uma coincidência.

É possível sim que autores de ficção científica sejam contratados por empresas para discutir tendências e apontar caminhos, mas a maioria delas não vai se concretizar. E quando um escritor senta para escrever, ele não fica pensando em prever o futuro, pois o futuro não pode ser previsto. O que ele faz é observar o seu mundo e escolher aquelas tendências que podem ou não surgir. Olhe para as obras de FC e veja quanta gente - ainda bem! - errou.


Alerta
Esse erro também é muito comum. Se o texto não diz que a FC previu algo, diz que é um aviso. Que a FC está alertando sobre o futuro. Sim, podemos fazer várias comparações com muitos enredos de FC por um simples motivo: porque o nosso mundo é uma merda. Margaret Atwood admitiu não ter inventado nada - além do enredo em si - do que aparece em O Conto da Aia. A segregação feminina, os estupros, mulheres com roupas específicas, a dominação masculina, tudo isso existiu e ainda existe. É por estarmos imersas numa cultura misógina que está a um passo de remover direitos femininos ao menor sinal de crise que a história faz tanto sentido.

Por que as vendas de 1984, Admirável Mundo Novo, O Conto da Aia e Farenheit 451 dispararam nas livrarias, em especial as gringas? Porque a arte pode nos dar simulações da realidade e maneiras de resistir e de compreender o mundo em que vivemos. Um livro nada mais é do que uma realidade paralela criada na cabeça de outra pessoa. O mundo em que entramos, com o crescimento de movimentos de extrema direita e a tomada de poder em vários países, a ameaça aos direitos humanos, o desprezo pela democracia e pelas minorias, tudo isso nós já vimos antes. A FC nos mostrou isso. Vivemos isso. E em tempos de crise a arte é uma forma de resistência. Por isso esses livros explodiram de vendas.

A ficção científica é importante por várias razões. Ela considera novos mundos possíveis e explora questões filosóficas, morais, políticas, sociais, ambientais para nos fazer ponderar e pensar a respeito. Ficção científica inspira as pessoas, como Edwin Hubble, que se inspirou nas obras de Jules Verne para se tornar um cientista. Na FC podemos ver como a sociedade pode funcionar de maneiras diferentes e tirar daí exemplos de como agir ou não, exercitando a imaginação e as possibilidades. Fazemos exercícios de imaginação o tempo todo e nem por isso você diz que teve uma previsão do futuro, certo? E ela é divertida, simples assim.

Por mais semelhanças e paralelos que uma obra faça com o momento presente do autor, isso não é uma previsão, nem mesmo um alerta. O combustível da criação é a realidade e é natural que essa realidade esteja em todas as páginas e personagens de um livro, disfarçadas de alienígenas, robôs, sociedades totalitárias, colônias em planetas distantes, luta pela sobrevivência em uma arena futurista, distopias misóginas que oprimem mulheres.

Quem sabe, ao parar de cobrar que a ficção científica preveja ou alerte sobre o futuro, as pessoas possam apreciar melhor suas obras.

Até mais!

Leia também:
Imagining the future: Why society needs science fiction - The Star Garden
Can Sci-Fi Writers Prepare Us for an Uncertain Future? - Wired
Don’t listen to the critics – science fiction explores what it means to be human in the truest way - Scroll in

Já que você chegou aqui...

Comentários

Form for Contact Page (Do not remove)