O jazz da escrita

Quem mexe com as artes, seja ela qual for sabe: não existe ponto final na arte. Ainda que um escritor termine um livro, o ponto final nunca será o mesmo. Nem o próximo livro, nem o próximo personagem. Estamos constantemente renovando os clássicos e encontrando novas maneiras de contar histórias, novos formatos, novas performances. Tal como o jazz.

o jazz da escrita
Arte de Lora Zombie



Bobby Short cantou e tocou piano por 35 anos no Café Carlyle em Nova York. Deu voz a grandes canções de nossos tempos inúmeras vezes a um público cativo. Entre uma canção e outra, Bobby, assim como tantos outros grandes músicos, sabia que não haveria jamais duas apresentações iguais.

Para um músico de jazz, não há interpretação definitiva ou resultado final. O objetivo é a renovação: uma música tocada de novo nunca será exatamente a mesma duas vezes.

Eagleman & Brandt, 2020

Para escritores como Scott Myers o jazz é o gênero musical que melhor cabe aos escritores, pois toda vez que sentamos para escrever, duas coisas precisam acontecer: escrever no momento e improvisar. É preciso existir junto dos personagens para guiá-los pelas vias tortuosas que preparamos para eles, é preciso viver o momento com eles. Cada vez que um trompetista de jazz se apresenta ao vivo, ele vive o momento e encontra uma centelha de criatividade que os faz interpretar uma música sempre de maneiras diferentes.

Escrever é encontrar a centelha da criatividade e viver no momento. Não importa se você já tenha parte da história pronta, precisamos dar espaço à espontaneidade e à improvisação. Para o músico de jazz, a improvisação é uma das partes essenciais da apresentação, elevando as canções a padrões inéditos que nunca mais serão repetidos, pois cada noite é diferente.

Os verdadeiros inovadores inovaram sendo apenas eles mesmos.

Count Basie

Mesmo que o aprendizado tanto da escrita quanto da música seja através da imitação, o caminho nos leva por uma estrada a fim de encontrar nossa própria voz. O exercício da imaginação e da criatividade precisa de uma imensa bagagem cultural para acontecer. É preciso abraçar a liberdade de explorar e seguir seus instintos criativos, encontrando sua própria marca.

Mesmo quando um músico erra, ele pode tirar vantagem da nota errada e buscar uma solução para o trecho da música. Um robô conseguiria tocar uma canção com perfeição de uma ponta a outra, mas nosso cérebro carece da novidade, carece do toque humano da imperfeição, de onde pode aprender com o erro. Devemos aceitar o erro, pois no pensamento criativo, o erro é uma necessidade.

Quando olhamos a história biológica da Terra encontramos animais bizarros e plantas tão esquisitas que dá a entender que a natureza bebeu demais. O número de espécies viventes hoje representa menos de 1% do total que já tentou a sorte neste planeta. Muitas ideias que a natureza testou em algum momento no passado não deu certo. Em cima do erro descobriu-se um melhor esqueleto, um melhor sistema de reprodução, um olho melhor, nadadeiras maiores.

Uma das minhas músicas prediletas na vida é Summertime, cantada por Ella Fitzgerald. Se você procurar as diversas vezes que Ella cantou essa música, vai encontrar diferentes versões, entonações e durações. É por essas inovações que vamos a shows para ouvir aquela música que ouvimos 500 vezes ser novamente interpretada. É por isso que lemos um novo livro com vampiros ou com zumbis, ou uma releitura de Romeu e Julieta. Sempre a algo novo a se tentar mesmo nas coisas que já estão consagradas.

Boa parte do pensamento criativo é subconsciente. Mas podemos - e devemos - estimulá-lo ao nos colocar em situações que precisem de engenho e pensamento flexível. Seja tocando jazz em um cabaré, sendo ao tentar nova uma técnica literária ou sair da zona de conforto e arriscar um novo estilo. Cerque-se de criatividade de diversas fontes e quando menos esperar também estará criando novas maneiras de contar histórias, assim como existem diferentes maneiras de cantar Summertime.

Até mais!


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Comentários

  1. Oi, tento escrever há muito tempo e a rotina sempre acaba me consumindo, mas seus textos me motivam, sempre que o trabalho está estressante, me leva ao cansaço, retirando a motivação, leio algo no seu blog e volto a minha atenção para algo que realmente acho valioso e me reequilibra, a leitura e a escrita. Obrigado e parabéns por mais este texto.

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    1. Fico feliz que meus textos possam ajudar de alguma forma! 🤍

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