Este poderia ser um daqueles casos de memória falsa, ou "Efeito Mandela", em que as pessoas juram de pé junto que assistiram a um filme que nunca existiu. No caso de The Tourist ele realmente nunca foi filmado, mas criou-se uma mística em torno dele que perdura até hoje e há inclusive quem peça que algum serviço de streaming rode o roteiro original e visionário de Clair Noto.
Arte conceitual de The Tourist, de HR Giger |
Se The Tourist tivesse sido filmado no começo dos anos 1980, teria sido o primeiro filme noir de ficção científica, título que hoje cabe a Blade Runner. A roteirista, Clair Noto, que já trabalhou para a Marvel Comics nos quadrinhos de Red Sonja, inspirou-se em O dia em que a Terra parou (1951) e em filmes com uma pegada new wave.
Imagine uma cidade de Nova York repleta de alienígenas, como em Homens de Preto, mas estranha, sombria, sexy. Imagine agora um lugar como o bar de Mos Eisley, só que criada e habitado por seres desenhados por HR Giger. O roteiro de The Tourist fala de Grace Ripley, uma executiva loira e bonita que é na verdade uma alienígena exilada na Terra. Ao encontrar outro alienígena exilado, Ripley é levada para conhecer o submundo de Manhattan, onde ela entra em um refúgio para outros aliens exilados em nosso planeta, chamado de O Corredor.
Neste lugar aliens de diferentes mundos convivem e alguns deles moram ali, pois eles não têm disfarces e moram em locais apertados e escuros, superlotados. Parte um cortiço, parte um clube de sexo, este é o único lugar onde eles não sofrem preconceito e onde podem conversar com seus iguais, já que estão exilados em um planeta distante de suas casas. Um dos alienígenas na Terra pode ter achado uma maneira de deixar nosso planeta e ele agora corre perigo. Além disso, a ansiedade por viverem em um lugar insalubre e longe de casa pode matar esses aliens e o sexo é uma maneira de mantê-los saudáveis.
Noto queria falar de tensão sexual, de êxtase, orgasmos e exclusão de maneiras que o cinema ainda não tinha retratado e a ficção científica era o lugar ideal para fazer isso. Seu roteiro foi considerado brilhante, ousado, sexy e começou a chamar a atenção de grandes diretores e produtores da época. Em 1980, a Universal se interessou pelo filme e o diretor Brian Gibson, de Poltergeist II (1986) começou a trabalhar nele, enquanto HR Giger era chamado para trabalhar no design do longa.
O próprio Giger disse que ficou completamente fascinado por The Tourist e sua ideia de transformar a Terra em um lugar para aliens se refugiarem. Sabemos o quanto a ficção científica se vale da figura do alienígena, do estrangeiro, para discutir os dilemas do nosso mundo e The Tourist parecia ser o vetor mais que adequado para jogar essas discussões na cara do público. E o estilo noir e sombrio era mais que adequado para a arte de Giger.
Infelizmente, o projeto era ambicioso e a falta de potencial para angariar uma grande audiência começou a afundar o projeto. O estúdio queria que Noto retrabalhasse o roteiro para torná-lo mais palatável para a audiência. Os cenários e a maquiagem exigiam um orçamento alto, portanto o filme precisaria dar um retorno de pelo menos o dobro para valer à pena e a Universal não acreditava na história do jeito que estava. Outros roteiristas tentaram trabalhar no roteiro de Noto, mas a coisa toda não foi para frente.
Noto também não estava nem um pouco feliz em alterar a estrutura do roteiro para agradar aos estúdios. Ela tinha criado a história daquele jeito por uma razão. O estúdio chegou até a pensar em alguns nomes de atrizes famosas para viver Grace Ripley nas telas (Michelle Pfeiffer, Sharon Stone, Kim Basinger, até mesmo Madonna leu o roteiro), mas com a relutância de Noto de alterar o roteiro, a Universal deu para trás.
Com os direitos do roteiro em mãos, ela o levou à United Artists, que se recusou a deixá-la trabalhar no filme. Dali, ela foi até a produtora de Francis Ford Coppola, na época um nome de respeito com o sucesso de O Poderoso Chefão e Apocalipse Now. A American Zoetrope estava com sérios problemas financeiros e Noto acabou voltando para a Universal, em busca de financiamento. Isso já era 1984. Nos anos seguintes, Noto tentou várias vezes, mas os estúdios continuavam relutantes.
Algumas das criaturas de O Corredor. HR Giger. |
Noto acredita que as peculiaridades do roteiro foram os verdadeiros motivos para que os estúdios o negassem tantas vezes. Primeiro é o fato de ter uma protagonista feminina em um mundo dominado por homens. No filme de Ridley Scott, Ellen Ripley se tornou uma personagem feminina no último minuto. No caso do roteiro de Noto, isso já era algo estabelecido. Segundo, a estrutura new wave do roteiro, com claras inspirações em Fellini, o sexo e as guardas sensuais dO Corredor, contribuíram para a incompreensão do filme da parte de diretores e produtores, que queriam alterar o projeto inteiro. E acredito que o terceiro motivo foi o fato de o filme ter uma roteirista que se negou a ceder seu trabalho para a indústria mainstream e acabou levando negativas de sucessivos estúdios e diretores, além de ser mulher.
Alguns fãs de The Tourist acabaram elevando-o a um status de não-filme cult. Os direitos do roteiro continuam com a Universal, mas Noto acha que não há mais espaço para as filmagens, ainda mais depois do sucesso estrondoso de Homens de Preto, que tem um tema muito parecido. MIB apareceu depois da história de Noto, entretanto a audiência em geral dificilmente vai saber separar. Filmes como Under the Skin (2013) conseguiram chegar ao ar noir sexy que The Tourist tinha. Porém, os serviços de streaming ainda podem ser um reduto para a visão de Noto e quem sabe para uma série de TV. E por que não? São tantos temas importantes tratados em The Tourist, como alienação, opressão, preconceito, e agora seria uma boa hora para uma produção.
O escritor Lee McGeorge novelizou o roteiro, sem a autorização de Clair Noto, mas não consegui encontrá-lo nas lojas online (os links no Goodreads não funcionam). O autor admite que é uma fanfic, corretamente atribuiu o nome de Claire Noto na capa, mas não sei onde ele está à venda ou se o autor distribuiu de graça. Mas você pode ler o roteiro escaneado (e em uma qualidade péssima), nesse link.
Até mais! 👽
Leia também:
The Hollywood horror story of writer Clair Noto's unfilmed masterpiece - Fred SzebinUnmade: Clair Noto’s The Tourist - Oponion
The Greatest Scifi Screenplay Never Produced - Bryn Tilly
Is "The Tourist" the Greatest Scifi Movie Never Made? - Gizmodo
Fiquei curiosa pra ver uma filmagem desse roteiro por conta dos assuntos que aborda. E é impressionante que o tempo passa e os problemas (falta de espaço pras mulheres) ainda continuam.
ResponderExcluirEnredo bem pensada pela roteirista, uma pena de ela não ter conseguido filmar sua história, devido ao machismo e burocracia. Algo assim aconteceu com o Jodorowsky ao tentar filmar Duna, Hollywood não bancaria um latino dirigindo um filme de grande orçamento.
ResponderExcluirMas sabe que ao ler o enredo e ver as artes conceituais, esse filme daria muito certo na mão do David Cronenberg. Só ver Naked Lunch e Videodrome, filmes com tensões sexuais e de ficção cientifica weird.
falando em filmes, acabei de descobrir (como eu não sabia) que vão regravar Duna.
ResponderExcluirE com um bom elenco e um bom diretor.
Bem, nada a ver com o post, mas fiquei empolgado e não tinha ngm aqui em tempos de isolamento para empolgar junto kkk