Uma das primeiras coisas a sofrer ataques em regimes totalitários e conservadores é a arte. Pintada, esculpida, cantada, falada, lida ou ouvida, os ataques começam rapidamente. É uma exposição barrada, é gente sem a menor compreensão do que é arte querendo barrar tirinhas, é um prefeito reacionário e conservador enquadrando um beijo em um quadrinho como pornografia e se sentir no direito de mandar fiscais para uma Bienal do Livro.
Capa de Love Is Love (2016), antologia em homenagem às vítimas do massacre da boate Pulse, em Orlando. Arte de Jordie Bellaire, Elsa Charretier e Steve Cook |
O caso estourou nas redes sociais, onde algumas pessoas reclamaram do conteúdo do quadrinho chamado Cruzada das Crianças. A reclamação chegou aos ouvidos do prefeito desocupado do Rio de Janeiro, que acionou fiscais da prefeitura para irem à Bienal do Livro. Considerando o quadrinho "impróprio" para menores, ele queria que obras com conteúdo semelhante fossem embaladas em plástico preto com um adesivo de aviso de conteúdo do lado de fora.
A Bienal não obedeceu (e nem deveria mesmo) e foi à justiça para garantir a liberdade do evento, das editoras e do público. Mas o prefeito não largou o osso, e conseguiu um desembargador tão reacionário quanto ele para garantir a apreensão de livros que considerassem impróprios. Mas enquanto isso rolava na justiça, do lado de fora, o youtuber Felipe Neto comprou o estoque de livros com temática LGBTQI+ das principais editoras, um total de 14 mil livros, e distribuiu de graça do lado de fora, embalado em plástico preto, com o adesivo que dizia: Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas. Felipe Neto agradece a sua luta pelo amor, pela inclusão e pela diversidade.
A coisa evoluiu até chegar ao Supremo Tribunal Federal que precisou reiterar o ÓBVIO ao prefeito e seus asseclas: o que eles estavam fazendo não só era inconstitucional como também era censura, outra coisa inconstitucional. O prefeito não quer largar o osso e, infelizmente, a medida fez sucesso entre seus apoiadores e do presidente. Mas o que importa mesmo foi o movimento em defesa da literatura, da liberdade e da democracia.
A ação do Felipe Neto, as pessoas com os livros erguidos e andando pelos corredores da Bienal, dizendo que não haveria censura, os bate-papos lotados com autores, a mobilização pelas redes sociais, toda essa união é o que importa no caso. Homofóbicos talvez não esperassem que toda uma comunidade se ergueria e bateria o pé ao preconceito deles. Ao igualarem um beijo entre dois rapazes como impróprio, eles o igualaram à pornografia. São tantos erros de julgamento e infelizmente todos esperados na mente de gente retrógrada e preconceituosa.
As tags #LeiaComOrgulho, #CensuraNuncaMais e #BienalResiste tomaram as redes sociais. Editoras e autores independentes liberaram seus ebooks na Amazon para download gratuito. Os estoques da Bienal esgotaram, inclusive do quadrinho que causou essa situação. Beijaços e protestos tomaram os corredores da Bienal do Rio. A arte e a liberdade estiveram sob ataque e a reação foi exemplar, veio de várias frentes.
O ataque à literatura LGBTQI+ também abre um perigoso precedente. Hoje foi um quadrinho com um beijo e livros com temática LGBT. Amanhã será o que? A ficção científica? A fantasia? O terror? Qual evento será barrado amanhã? E a Bienal de São Paulo, ano que vem, terá que funcionar com mandado de segurança por que um vereador desocupado vai se preocupar com quadrinhos? Uma vez que houve um primeiro ataque, muita gente pode se sentir confortável para repeti-lo. É preciso ficar vigilante, SEMPRE. Pois as minorias sempre são os primeiros sob o alvo dos reacionários, ditadores e preconceituosos.
O poder da literatura, especialmente a de ficção, é imenso. O principal é o fato de ela nos tornar mais empáticos. Quando lemos e acompanhamos a vida de um personagem ficcional, nós entramos em uma realidade alternativa e simulamos sua consciência, nos colocamos em seu lugar e caminhamos com seus sapatos. Empatia é uma maneira de entender o outro e ao fazermos isso, nós respeitamos o outro. Defender a literatura é defender as pessoas, defender seus direitos, defender suas ideias e sua existência.
Leia e viva com orgulho. Compre livros de autores ou com protagonistas LGBTQI+, deixe resenhas positivas para esses autores saberem o quanto seu trabalho importa. Dê livros de presente, converse sobre livros, participe de grupos de leitura, entre em blogs e canais literários, entre em contato com os autores. Se a Bienal nos mostrou algo foi que somos muito mais fortes do que a censura e que é preciso vigiar sempre, para que direitos tão duramente conquistados não sejam perdidos.
Não importa quem você ama. O que importa é que você ama.
Coletânea Love is Love
Se a pessoa está lendo um livro, ouvindo musica de verdade, assistindo filmes ou series ou uma peça de teatro ou jogando vídeo game, enfim sendo normal, isso quer dizer que ela não está nas igrejas ouvindo as besteiras de padres e pastores, e portanto não irá pagar o dizimo em dia.
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