As sensações incompreendidas

Quase sempre, um filme é impreciso histórica, biográfica e cientificamente. E tudo bem que seja, pois são obras de ficção. São trabalhos feitos por outras pessoas, que acabam romanceando e floreando vidas e pessoas, eventos, fatos, tomando licenças poéticas que tornem os assuntos mais interessantes para as audiências. Afinal, isso é um negócio multimilionário. Na ficção podemos tudo, podemos fazer praticamente qualquer exercício de imaginação. Sabemos também que nem todos os trabalhos agradam a críticos, fãs ou a ambos, como se a proposta não fosse entendida por todos. É o caso das emoções e das sensações dos personagens. Elas também são essenciais para que possamos compreender uma história e não é todo mundo que entende ou curte esse tema. O que é uma pena.

tela pintada com uma mulher, simbolizando a noite e um fundo azul estrelado
'La Nuit' de Auguste Raynaud

Maria Antonieta (2006), de Sofia Coppola é um dos meus filmes favoritos. Não é sobre a Revolução Francesa, não é sobre a monarquia, é um filme sobre uma adolescente obrigada a se casar com um completo desconhecido e jogada no meio da corte francesa, com todos os seus mexericos e fofocas, futilidades e jogos de poder. É sobre uma adolescente que precisa aprender o jogo da corte, mas mais do que isso, é um filme sobre uma mulher jovem, privilegiada, mas com obrigações para com dois governos, uma jovem que apenas queria poder viver o melhor que pudesse.

Antonieta precisa preencher seu tempo e faz o que qualquer adolescente do século XVIII faria: festas, compras, comida fina e champanhes, jogatina e flerte com belos oficiais. Ela age como a adolescente que é, dentro das possibilidades que têm. Este era o objetivo de Sofia, fazer um filme que fosse quase como um diário pessoal da jovem Antonieta, não uma representação fiel de uma monarca jovem e abastada, com precisão histórica relacionada à Revolução. Note como a indústria continuamente descarta as sensações e anseios de mulheres, principalmente das adolescentes, como sendo fúteis e superficiais, como se as lutas para se encontrar em um mundo sempre hostil nunca importassem.

Mas importam.

Onde está Segunda?, da Netflix, é outro filme sobre essas sensações incompreendidas. E também é um filme que a maioria das pessoas não gostou. Sete irmãs gêmeas precisam interpretar a mesma irmã em um mundo onde há uma restritiva política de controle de natalidade. Este não é um filme sobre a questão da natalidade, que é sim importante e bastante discutida pela ficção, mas é um filme sobre as diversas mulheres que somos obrigadas a interpretar no curso de nossas vidas. É uma distopia que dialoga com essa mulher que vive várias mulheres na vida, porque precisa se adaptar ao momento, à política vigente, aos homens e outras pessoas ao redor.

As irmãs são interpretadas por Noomi Rapace. Cada uma delas tem um corte de cabelo diferente, maneiras diferentes de agir e de pensar, mas precisam vestir a mesma roupa, usar o mesmo cabelo e falar da mesma maneira ao saírem de casa. É bastante compreensível que os homens não tenham curtido o enredo, pois eles o assistem apenas pelo viés da distopia da superpopulação. Eles não precisam mudar sua maneira de ser o tempo todo, nem precisam mudar seus hábitos e se adaptar ao que os outros exigem que façam, usando máscaras que agradem a este ou aquele. Essa demanda é feminina, o que explica o desagrado de muitos caras.

Embora a maioria das mulheres não tenha o mesmo nível de privilégio ou pressão de uma rainha, podemos nos relacionar com esse desejo de escapar dos limites impostos a nós pelo mundo. E, às vezes, queremos fazer isso através de coisas que são descartadas como ❝femininas❞, o que realmente significa que (alguns) homens não as entendam e, portanto, acreditem que não tenham valor.

Natasha Lavender - Cherry Pics

Gravidade (2013), com Sandra Bullock, teve a proeza de ser preciso cientificamente em boa parte do longa, mas também aliou as sensações, anseios e medos da protagonista, que eram o que realmente importava na história. É sobre uma mulher sozinha, carregando suas dores, precisando arranjar força de onde acha que nem exista para sobreviver. É um filme que dialoga com a dor, com a sensação de isolamento que tantas nós sentimos em algum momento de nossas vidas, encapsuladas nas nossas bolhas, precisando nos resgatar e sobreviver.

E claro, acredito que o odiado por muitos, Interestelar (2014), também seja um filme sobre sensações. A verdadeira protagonista do filme é a Murph (Jessica Chastain), pois ela é a cientista que salva a humanidade. O filme não é apenas sobre isso, mas também fala de emoções. É sobre seu lugar no universo quando este mesmo universo está desabando sobre sua cabeça. É sobre ser abandonada pelo pai e perdoá-lo ao perceber sua responsabilidade diante do desconhecido. É sobre as emoções que flutuam pelo tempo e pelo espaço ligando pessoas, até mesmo aquelas que já morreram. Aí é óbvio que muita gente já descartou logo de cara a cena de Amelia Brand (Anne Hathaway) falando sobre o amor. Claro, né? Coisa chata essa, amor.

Por que os críticos e o público elogiam filmes que falem de traumas e emoções masculinas (e pense aí nos filmes do Tarantino e companhia), mas quando são mulheres os longas são logo descartados como "coisa de mulherzinha"? Nem precisa pensar muito nesse caso, pois é fácil perceber que as emoções e sentimentos femininos são vistos como descartáveis, frívolos, que não valem o papel do ingresso ou o valor do streaming. Em um mundo que odeia as mulheres (exceto aquelas que caibam nas fantasias masculinas) qualquer coisa que se relacione ao universo feminino é combatido, ridicularizado, tido como uma coisa boba e inútil.

Mesmo que o filme não lide necessariamente com as emoções femininas, mas que tenha apenas mulheres protagonistas e que não sirvam para o male gaze (Crepúsculo, Jogos Vorazes, Divergente, Caça-Fantasmas, Capitã Marvel e por aí vai) de repente o filme não presta. Faço esse pedido para os rapazes, principalmente. Não descartem um filme ou digam que ele não presta, apenas porque não tem um marombado de collant na tela, metendo porrada. O exercício da empatia vai te ajudar e muito a compreender as outras pessoas. Faça isso.

Até mais! 🍒

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