Resenha: A curva do sonho, de Ursula K. Le Guin

Ganhador do Locus de 1972, A curva do sonho chega ao Brasil em uma edição caprichada pela Editora Morro Branco. Uma dica: deixe a capa embaixo de um abajur e depois apague a luz! Uma obra curtinha, mas de muito significado, pois trata de sonhos. Mas sonhos que acabam alterando a realidade, algo que pode ser fatal.

Parceria Momentum Saga e editora Morro Branco

O livro
George Orr vive em um mundo que não só está superpopuloso como também vem sofrendo com a instabilidade do clima. Ele é um cidadão comum, mas que vem enfrentando dificuldades para dormir. Isso porque seus sonhos, segundo o que ele diz, alteram a realidade quando ele acorda. Depois de passar mal e exagerar na dose de medicamentos, usando o cartão da farmácia de um amigo, George é obrigado a ir para a terapia. É assim que ele chega ao consultório tímido do Dr. Haber.

Resenha: A curva do sonho, de Ursula K. Le Guin

O mundo em que George vive não é tão distante do nosso. Estamos superpopulosos, as mudanças climáticas estão em curso e não há mais ponto de retorno. Doenças antes tidas como vencidas estão voltando com força, seja por ignorância, seja pelo relaxamento das políticas de saúde e de saneamento básico. George poderia ser um sujeito que tromba com você no metrô. É só mais um cara tentando levar sua vida, se não fosse pelo pequeno inconveniente de que seus sonhos alteram a realidade.

Dr. Haber percebe pela medicação de Orr e seu comportamento que ele está se privando de sonhar. Chegamos ao estágio dos sonhos quando chegamos ao chamado sono REM. Se não chegamos a dormir profundamente, a tendência é começarmos a ter problemas, cada vez mais sérios, enquanto estamos acordados. O sono profundo, aquele que nos leva a sonhar, é extremamente necessário para a manutenção de nossa saúde mental, então pode imaginar o desespero de Orr por não querer sonhar e qual é o seu estado geral.

Acontece que Haber, ao hipnotizar Orr e se valer de um equipamento que leva o paciente para o estágio dos sonhos quase que imediatamente, meio que desdenha de George quando ele fala que seus sonhos mudam a realidade e que só ele tem lembranças disso. Mas então a mudança acontece diante de seus olhos. E o médico, notando o imenso poder que tem em mãos, decide manipular Orr para seus próprios fins.

Há um pássaro em um poema de T.S. Eliot que diz que a humanidade não pode suportar muita realidade; mas o pássaro está enganado. Um homem pode suportar todo o peso do universo por oitenta anos. É a irrealidade que ele não consegue suportar.

Página 218

Imagine você tendo o poder involuntário de alterar a realidade a partir de seus sonhos. Todas nós já tivemos sonhos absurdos, impossíveis, terríveis, assustadores, engraçados. Mas se alguém começar a sugerir para a sua mente coisas para sonhar, você se torna um escravo dos desejos dessa pessoa, certo? É o que Harber começa a fazer. Ao manipular os sonhos de Orr, ele pensa que pode fazer o melhor para o mundo, o melhor para si próprio, quando na verdade o caos está se instalando ainda que seja na mente das pessoas que estão percebendo essa mudança.

Os personagens carecem de uma maior profundidade. Sabemos pouco sobre suas vidas, apenas suas motivações e seu momento presente e gostaria de ter mais informações sobre o passado de cada um deles. Gosto de livros que tenham personagens mais profundos, fazer o que. É uma narrativa rápida, ágil.

Temos poucas páginas, mas não pense que o livro tem pouco significado ou discussões rasas. Levei o tempo necessário para me adaptar às mudanças que Orr presenciava porque isso também acaba nos afetando. Um quadro na parede pode não ser mais um quadro na página seguinte. É impressionante como Ursula colocou tantas coisas em tão poucas páginas.

A edição da Morro Branco está lindíssima com essa capa que brilha no escuro! Bem diagramada e com poucos erros de revisão, a tradução ficou na mão de Heci Regina Candiani e está excelente. Senti falta de uma introdução feita pela editora, apresentando a obra para o público brasileiro, acho que o livro merecia isso.


Ficção e realidade
Enquanto lia o livro pensei no filme Esfera, onde o objeto que dá nome ao filme é capaz de materializar os sonhos das pessoas que fazem parte da expedição e isso se mostra fatal para a maioria que está ali. Muitas vezes temos a impressão que a materialização de nossos sonhos, não os que desejamos, mas aqueles que temos enquanto dormimos, seria destrutiva, já que não temos controle sobre eles. É mais ou menos essa a discussão de Ursula em A curva do sonho. Dar um poder absoluto para uma pessoa pode corrompê-la absolutamente.

Ursula K. Le Guin

Ursula K. Le Guin foi uma escritora, ficcionista, tradutora, poetisa, ensaísta e editora literária norte-americana, uma das mais prestigiadas escritoras de ficção científica e fantasia.

Pontos positivos
George Orr
Sonhos
Construção de mundo
Pontos negativos

Pode ser lento em algumas partes.
Curto

Título: A curva do sonho
Título original: The lathe of heaven
Autora: Ursula K. Le Guin
Tradutora: Heci Regina Candiani
Editora: Morro Branco
Ano: 2019
Páginas: 224
Onde comprar: Amazon

Avaliação do MS?
Foi uma curta, mas proveitosa jornada, por vezes frustrante, por vezes poéticas. Devemos sonhar, devemos desejar um mundo melhor, mas o custo imposto a George Orr e às pessoas à sua volta pode ser alto demais por causa disso. Quatro aliens para o livro e uma forte indicação para você ler também!

MUITO BOM!

Até mais! 👁️‍🗨️

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Adorei o livro, mas concordo com todos os pormenores que você apontou aqui. Também acho que el pode ser lento em algumas partes e eu diria até que rola uma certa dose psicodelia em alguns trechos. Em alguns momentos ficou difícil pra mim acompanhar as mudanças da realidade. Uma boa leitura e uma resenha melhor ainda.

    ATENÇÃO, SPOILERS LEVES ABAIXO:




    eu confesso que terminei o livro sem ter certeza do que tinha acontecido com o mundo, meio que parecido com o estado que George fica no final, confuso com as muitas realidades que viveu.

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    Respostas
    1. Eu tive essa mesma impressão, de não saber com certeza o que tinha acontecido, o que era real, quais lembranças eram verdadeiras. Se a intenção era essa, acho que ela foi bem sucedida!

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    2. Li há anos atrás a tradução portuguesa da Europa-América. Horrível título, "O flagelo dos céus". Lindo esse título para a edição brasileira.

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