Cherry 2000 é um filme de 1987, veterano da Sessão da Tarde e do Cinema em Casa. Passando-se em 2017, o filme flopou nas bilheterias, tem uma pontuação baixa nos sites especializados, mas ainda assim é o tipo de filme que se estiver passando eu acabo assistindo de um jeito ou de outro por curtir muito algumas visões de futuro que o filme fez e suas críticas a ele.
Não consigo decidir se esse filme é uma comédia e/ou um filme de ação, estilo road trip, mas sem dúvida alguma é uma ficção científica distópica que nos apresenta um mundo onde profundas mudanças sociais, políticas e tecnológicas aconteceram. Começamos o filme com Sam Treadwell chegando em casa, conversando com sua namorada, que é lindíssima, escultural, boba e ingênua (porque é claro que é). Os dois então começam a rolar pelo chão da cozinha em uma cena sensual e a água e a espuma da pia começam a transbordar, molhando todo o chão. Os dois estão no maior pega quando a tal da namorada tem um curto circuito por causa da água. Sam quebrou sua boneca sexual.
Acontece que a Cherry 2000 é um modelo raro de robôs sexuais que não está mais à venda e o sujeito da assistência técnica diz para Sam que não tem conserto, chegando a lhe oferecer outros modelos mais recentes. Como não o convence, Sam leva o disco com o software da sua Cherry e todas as suas interações com ele, enquanto Sam tenta, em vão, se relacionar com mulheres de verdade, um procedimento complicado, envolvendo contratos e advogados no ato da paquera. Até que ele contrata uma rastreadora, E. Johnson, especializada em achar e coletar coisas raras em uma região apocalíptica e sem lei dos Estados Unidos, conhecida como Zona 7.
Enquanto Sam se lamenta por ter fritado a placa-mãe do amor de sua vida, o ar exagerado do filme que não encantou as audiências na época de seu lançamento, tem sombrias raízes fixadas na atualidade. Sexbots não são mais assunto de ficção científica, elas estão em fabricação e à venda, ainda que estejam distantes da desenvoltura de Cherry 2000. Estamos antropomorfizando os robôs mais do que nunca e séries que exploram a interação e o preconceito com robôs como Humans e Westworld estão levantando discussões que podem, muito bem, deixar os âmbitos da ficção.
Enxergar a alma nos objetos não é novo. No animismo acredita-se que todas as formas identificáveis da natureza possuem uma alma e agem intencionalmente. É o que causou estranhamento na audiência ocidental com a série da Marie Kondo, onde ela agradece aos objetos por sua utilidade antes de se desfazer deles. Quem nunca xingou o celular ou o computador que travou, como se ele pudesse entender sua raiva? Quem nunca pediu que o chuveiro esquentasse rápido num dia frio?
Mas quando temos robôs que imitam a forma humana e simulam uma consciência ou inteligência, a coisa muda um pouco de figura. O caso do personagem de Sam em Cherry 2000 é um típico homem incapaz de se relacionar com mulheres de carne e osso, que sejam dotadas de personalidade, que possam dizer não ou que tenham vontades próprias. Só por essa descrição já poderíamos classificar muitos incels ou virjões da internet que não conseguem manter relacionamentos ou que tenham dificuldade de interação social.
Houve casos na mídia não faz muito tempo de robôs que foram vandalizados, inclusive uma boneca sexual que foi violada a tal ponto que os donos a tiraram de exposição em uma feira. Até que ponto é saudável transportar sentimentos humanos para coisas? No filme Her, o personagem de Joaquin Phoenix conseguiu se apaixonar pela voz quente de sua assistente pessoal. Só a voz, mas que preenchia os abismos de afeto e de fantasias que o personagem tinha.
É necessário apontar que entre os bonecos e robôs sexuais a esmagadora maioria é de formas femininas. Até mesmo no filme, com várias passagens machistas, só vemos robôs femininas sendo usadas e abusadas. No mundo real, essas bonecas possuem corpos impossíveis, são desprovidas de inteligência e podem performar qualquer coisa que o dono quiser. O quão danoso isso é? Uma pessoa totalmente criada no virtual, nas simulações, tenderá a passar esse comportamento para o real por acreditar que é assim que se age. Ela acabará tratando pessoas como objetos, desumanizando-as, querendo que se comportem como as máquinas, que não são dotadas de livre arbítrio.
Que é o que já acontece com adolescentes que tiveram sua educação sexual baseada nos filmes pornôs. Quando estão com uma garota e tentam fazer o mesmo que os atores nos filmes, eles ficam surpresos por descobrir que as meninas não querem 90 minutos de sexo anal, nem tapas nos seios ou no rosto. Imagine uma sociedade como a de Cherry 2000, onde os caras baseiam seus relacionamentos apenas em robôs que respondem para eles da maneira que eles querem, de repente, tendo que lidar com mulheres reais? Tendo de lidar com pessoas reais?
A FC trata desse assunto nem é de hoje, mas hoje essa discussão se faz urgente se cada vez mais mulheres começarem a ser trocadas por bonecas. Nós já vivemos em um momento histórico em que verdades, como a esfericidade da Terra, estão sendo questionadas por gente que não compreende ciência básica, que acredita numa conspiração global que esconder as "bordas" do planeta. Onde mentiras (ou fake news) são muito mais palatáveis para aqueles que estejam inclinados à mentira fácil do que à dura verdade. Questiona-se a verdade com afirmações estapafúrdias e cria-se uma dúvida fácil de derrubar, mas que na cabeça dos que nela acreditam está correta, os fatos é que estão errados.
Entenda que a interação social nem sempre é fácil para todo mundo. Mas a resposta está na imersão completa ao que não é real ou ao equilíbrio entre o real e o simulado? No filme Surrogates (2009) poucas pessoas saem às ruas, a maioria se vale de robôs que controlam do conforto de seus lares. Por mais atraente que seja a ideia de estar sempre em forma, sempre maquiada, sempre em forma, isso não passa de uma ilusão. E enquanto as tecnologias possam ser muito úteis para ajudar as pessoas, a partir do momento em que ela simula o real e é preferível a ele, nós temos um problema.
No filme, Sam percebeu que uma mulher real tinha muito mais valor do que uma boneca. Mas será que esse relacionamento daria certo na vida real? De tão acostumado a ter as respostas prontas e doces de sua Cherry, como ele lidaria com uma mulher real, imprevisível, sem saber de antemão como ela vai se comportar? Alguns homens não conseguem aceitar que suas parceiras sejam dotadas de vontades e independência. Consegue imaginar o que poderia acontecer, certo?
A FC já deu vários exemplos e respostas de como os seres humanos poderão agir nessas situações e em menos de dez anos alguns futurólogos já dizem que os temas serão corriqueiros. Estaremos preparadas para isso?
Até mais.
Se tem uma coisa que considero perturbadora no mundo é esse negócio de bonecas sexuais. Ninguém nunca vai me convencer de que isso é inofensivo. A própria fantasia coletiva de ter uma escrava conveniente é no mínimo complicada... Terem tanta disponibilidade, dinheiro, energia e pesquisa pra avançar esse mercado me parece um exemplo do que homens com poder acreditam ser a maior utilidade de mulheres. Não sei como ninguém nunca criou uma distopia onde todos nascem apenas homens, de encubadoras artificiais (pesquisa já existente hoje), as figuras femininas são escravas robóticas e homens muito ricos podem encomendar e comprar mulheres reais para ter a experiência. Desculpa se isso parece exagerado ou ofensivo, mas juro que esse negócio me dá um pânico real.
ResponderExcluirJá criaram sim. O anime Saber Marionette J e sua continuação, Saber Marionette J to X. Os dois receberam um estudo aprofundado do pesquisador Toshio Okada, da Universidade de Tóquio — ele viu nessa série o paradigma inicial da cultura otaku.
ExcluirAh, falando nisso, chegou a ler um mangá-documentário chamado "Virgem depois dos 30?" Saiu no Brasil e, acredite, é assustador.
ResponderExcluir