Eu peguei este livro por influência da maravilhosa Jessica, lá do blog parceiro Fright Like a Girl. Especialista em terror, eu a vi comentar sobre o livro e depois de mostrar o bendito nas redes sociais, fui buscar mais informações. Eu já tinha ouvido falar da biografada, Milicent Patrick, e seu trabalho pioneiro em Hollywood, e de como sua carreira foi afundada por um colega machista e invejoso. Mallory O'Meara, roteirista e produtora de filmes de terror, resgata a história desta pioneira e aponta as desigualdades que ainda persistem na indústria, 65 anos depois do pioneirismo do trabalho de Milicent.
O livro
Milicent Patrick ajudou a inventar um novo tipo de animação para os estúdios Disney e foi uma das primeiras mulheres a trabalhar com efeitos especiais para um estúdio. Seus designs influenciariam figuras de peso da indústria, como Guillermo del Toro e Steven Spielberg. Então como que seu nome não é hoje tido como referência para o cinema, especialmente os filmes de terror? Por que seu nome não está em tudo quanto é lugar, principalmente nos créditos do filme cuja criatura ela criou?A resposta é fácil: porque Milicent era uma mulher. Nascida Mildred Elizabeth Fulvia Rossi em 1915, em San Francisco, seu pai Camille Rossi foi um dos engenheiros que ajudou a construir o Castelo Hearst, na Califórnia, uma obra descomunal e cara de um dos grandes barões da mídia da época. Por causa do trabalho do pai, a família se mudava constantemente, o que tornou a criação das crianças multicultural. Mas a família não era muito feliz. Pelas informações levantadas por Mallory, a mãe de Milicent era bastante infeliz no casamento.
Milicent se formou no Chouinard Art Institute, em Los Angeles, uma das poucas instituições que admitiam mulheres na época e em 1939 tornou-se uma das primeiras animadoras e coloristas da Disney. Mesmo tendo ficado apenas dois anos no estúdio, ela ajudou a criar um estilo único para pintura em animações. Nesta época, os ilustradores eram majoritariamente homens, mas quem fazia a pintura dos acetados para as animações eram mulheres, o que deu a Milicent uma constante enxaqueca por trabalhar horas seguidas em uma caixa de luz. Tendo deixado os estúdios e sem apoio da família conservadora, Milicent começou a trabalhar como modelo e atriz.
O que eu mais gostei da biografia é que Mallory não se limitou a apenas falar da biografada. A autora reconhece a dificuldade de levantar informações sobre Milicent até mesmo nos escritórios da Disney. Foi um incrível trabalho de persistência, investigação e pesquisa para compor o livro e Mallory é bastante sincera quando mostra que não havia como descobrir mais sobre determinadas informações.
Tendo descoberto sobre Milicent ainda muito nova e sendo apaixonada pelo filme Fantasia, que Milicent ajudou a criar, Mallory sentiu uma ligação imediata com ela. Se na época de Milicent mulheres já sofriam com discriminação na indústria, nos dias de hoje isso ainda ocorre e Mallory conta alguns casos de sua própria carreira, como um ator se oferecendo pra depilar suas partes íntimas ou um produtor perguntando se ela estava transando com o diretor para conseguir trabalhar no filme. Em 60 anos, a indústria que Milicent conheceu mudou nada ou quase nada. A inserção de mulheres ainda é difícil, rodeada de boatos e dúvidas sobre sua competência e a distribuição de prêmios mostra bem isso.
O problema de você ser a única mulher a fazer qualquer coisa é que você tem que ser perfeita.
(tradução livre)
Em 1954, Milicent começou a trabalhar no Universal Studios, que já era famoso na época por seus monstros como Frankenstein, a Múmia e Drácula. Naquele ano, estavam produzindo O Monstro da Lagoa Negra, e Milicent foi a primeira mulher a criar um monstro para um filme na indústria e na época da confecção do livro (2018), ainda é. Seu trabalho foi tão impactante que o estúdio a lançou em uma turnê de duas semanas para fazer a divulgação do filme e falar de seu trabalho.
O problema foi o ciúme causado no pirracento Bud Westmore, chefe do estúdio de maquiagem e efeitos. Inconformado com a notoriedade dada a Milicent, ele causou um inferno dentro do estúdio, mandando que alterassem os títulos da divulgação de que ela não era a criadora do monstro.
Milicent nos estúdios da Universal trabalhando na máscara do Monstro da Lagoa Negra |
Quando ela voltou para o estúdio depois da turnê, descobriu que estava desempregada. Ele tomou todos os projetos dela, não deu créditos, tampouco a contratou novamente para qualquer outro trabalho. Milicent nunca mais desenhou ou criou nada na indústria do cinema. Sua carreira estava acabada por causa de um macho recalcado. Se hoje já é difícil para uma mulher conseguir vencer a misoginia, pense nos anos 1950? Ela acabou não tendo chance.
O livro está entremeado pelas memórias e experiências de Mallory e pela vida de Milicent resgatada por seu trabalho impecável. A narrativa, mesmo em inglês, está muito gostosa, o livro voa na mão. Gostaria muito de ver uma edição em português. Seria um grande reconhecimento aos feitos de Milicent, que poderia ter contribuído muito mais do que contribuiu se não fosse o machismo da sociedade.
Obra e realidade
Quando Mallory começou a escrever o livro e comentou com os amigos sobre quem ela estava escrevendo, seus amigos ficaram curiosos. Quem era Milicent Patrick e por que ela achava que essa pessoa merecia uma biografia? Mallory foi bem direta no livro quando traça paralelos de sua própria jornada no cinema com a de Milicent e de como ainda é difícil ser considerada uma boa profissional no meio sem ter um patrono ou amante. Se em 2019 isso pouco mudou, Milicent aguentou uma carga ainda maior, já que sua família não via com bons olhos sua carreira, muito menos a de atriz e deixou de ampará-la muito cedo. Se para os nossos dias atuais, 60 anos depois de seu trabalho com O Monstro da Lagoa Negra, a situação da mulher na indústria do cinema pouco mudou, significa que ainda temos uma longa estrada pela frente.Mallory teve dificuldades em conseguir dados sobre ela justamente pelo ambiente tóxico entre colecionadores e nerds que só se interessaram em Milicent por ela ser uma mulher muito bonita. Eles desdenhavam do projeto de Mallory e desdenhavam ainda mais das contribuições de Milicent para a história do cinema.
Foto de Allan Amato, 2017 |
Mallory O'Meara é roteirista e produtora na Dark Dunes Productions. Morando em Los Angeles, é uma das apresentadoras do podcast Reading Glasses, junto da atriz e cineasta, Brea Grant.
PONTOS POSITIVOS
Bem escrito
Bem pesquisado
A vida de Milicent Patrick
PONTOS NEGATIVOS
Preço
Não tem em português
Acaba rápido!
Bem escrito
Bem pesquisado
A vida de Milicent Patrick
PONTOS NEGATIVOS
Preço
Não tem em português
Acaba rápido!
Avaliação do MS?
Fiquei muito impactada com a leitura e sensibilizada pela trajetória, tanto de Milicent quando de Mallory, tanto que criei uma página em português na Wikipédia para Milicent. Não tem uma mulher que não simpatize com tudo o que Milicent foi obrigada a aguentar apenas porque era boa no que fazia. E só posso lamentar o que aconteceu com ela e tantas outras mulheres que não tiveram a chance de contribuir para suas áreas da maneira que queriam porque eram mulheres. Leitura super recomendada para você que gosta de biografias e da indústria do cinema. Uma leitura essencial e obrigatória!Até mais!
Não conheço nenhuma mulher que trabalhe na minha área, ou em qualquer área criativa, ou em qualquer outra área, que não consiga se espelhar em Milicent Patrick. Não é apenas a história dela, é a minha também.
(tradução livre)
A Mallory é uma mulher fantástica! Recomendo muito o podcast.
ResponderExcluirNão sabia exatamente sobre o que se tratava o livro dela, já que não leio não-ficção. Mas após essa sinopse em português, fiquei bem interessado.
O texto é uma resenha e análise do livro, sinopse é outra coisa.
ExcluirIndico fortemente a leitura, mesmo que você não goste de não-ficção, pois não é só a biografia da Milicent, é uma análise do cenário atual e passado do cinema de terror e como muita coisa continua igual desde os tempos dos filmes de monstros da Universal.