Um dos grandes livros de referência para os estudiosos da ficção científica finalmente recebeu uma tradução! O livro de Adam Roberts tece uma teoria bem pertinente para as origens da ficção científica e discorre sobre como ela conquistou o público e se tornou a melhor ferramenta para se discutir sociedade, o impacto da ciência e da tecnologia e discutir cenários possíveis para o futuro.
Editora Seoman
O livro
A ficção científica é a grande cultura secular do nosso tempo.
Página 63
Apesar de ser uma ávida leitora de ficção científica, eu não sou nenhuma especialista; sou só uma fã engajada. Eu teria que voltar para a pós-graduação para me considerar uma especialista e certamente este livro seria a principal fonte de pesquisa para qualquer trabalho que eu fosse fazer sobre FC. Minuciosamente pesquisado e com muitas fontes de pesquisa, não é o tipo de livro que você lê num final de semana. Li durante meses para garantir que apreenderia o máximo que pudesse dele e ainda estou pensando sobre a afirmação do autor sobre a origem da ficção científica moderna: a Reforma Protestante.
Não concordo com a opção de colocar o termo "verdadeira" no título do livro que em inglês é apenas A História da Ficção Científica. Achei sensacionalista e desnecessário, pois o próprio autor comenta que sua teoria ainda é discutida e pouco aceita pelos especialistas do gênero e que está aberto a novas interpretações. Eu mesma discordo de algumas considerações, mas não sei se classificaria como verdadeira, descartando tudo o que foi discutido antes, pois é essa a impressão que o título passa.
Adam afirma:
Minha tese é de que o gênero como um todo ainda carrega a marca do conflito cultural que lhe deu origem, e apenas por acaso esse conflito foi uma crise religiosa europeia. A FC começa como um tipo nitidamente protestante de escrita fantástica que brota das antigas tradições (em geral) católicas de romances e histórias fantásticas, mas responde às novas ciências, cujos avanços estavam também entrelaçados de modo complexo à cultura da Reforma.
Página 40
A questão é que a Reforma Protestante mostrava uma maneira diferente de se chegar a Deus, que era através da razão. Se o sentido original da Reforma era viver de maneira reverente a Deus, isso mudou para se viver de uma maneira mais racional. Esse pensamento também se relaciona com a ciência, que também tomava forma de maneira racional por volta dessa época.
Com muitas fontes pesquisadas e mencionadas no corpo do texto, a leitura flui um pouco mais devagar do que numa leitura de ficção, por exemplo. Ainda assim, o livro me fez pensar em definições e origens, em ciência e FC e em como uma coisa não está separada da outra, ao contrário, a ficção científica é um espaço onde são conduzidos experimentos e pesquisas são feitas de maneiras não convencionais. O laboratório é a mente dos escritores de ficção científica que estão dando pistas sobre o futuro e imaginando cenários não apenas para leitores, mas também para empresas e até para o Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos.
O autor trabalha também os conceitos de ciência e tecnologia e de como se associam e desassociam e trabalhou a questão do preconceito de muitos leitores de FC com certas tecnologias e pensamentos, como o fato de tolerar sem nenhum problema a gravidade artificial ou os motores de FTL (mais rápidos que a velocidade da luz), mas não conseguem tolerar a trajetória de projéteis em ambientes em rotação e detonam os enredos por conta de uma explicação como essa.
O autor não fica só nas definições e nas origens, ele discorre sobre como, para ele, a ficção científica é de longa data e sofreu uma interrupção com a ascensão da Igreja Católica e depois retoma sua vitalidade com a Reforma Protestante. Vemos também o preconceito nato de muitos críticos para com a FC, que a consideram uma literatura menor e até uma literatura de L minúsculo. Quem já comentou a respeito, inclusive, é o escritor Hugh Howey, que trabalhou em livraria. Ele comentou que qualquer livro de FC que fosse considerado muito bom era retirado da sessão de ficção científica e colocada em literatura estrangeira. E isso ainda é comum e digo isso como alguém que trabalhou em livraria, onde a ficção científica ficava relegada a meia prateleira perto do chão.
Adam Roberts reconta a evolução da sociedade ocidental por meio de histórias de ficção científica e seu impacto para o pensamento científico e literário. E o mais legal: ele não se restringe às obras clássicas, mas reitera a importância dos quadrinhos, do cinema, das obras juvenis que foram adaptadas as telonas, séries de TV e jogos; a sociedade hoje respira ficção científica e ainda assim não consegue captar boa parte das críticas e das metáforas por ela trabalhadas.
O livro é bem grande, bem diagramado e com algumas imagens no corpo do texto. Questiono a adição do "verdadeira" no título e a escolha de palavras como "denegrir" na tradução, já que esta é uma palavra racista e há sinônimos que podem ser usados sem usar uma palavra ofensiva. Existem alguns erros de digitação, como palavras não batidas, mas em geral isso não atrapalha na leitura.
(...) a vida humana tem se deslocado de uma compreensão essencialmente religiosa do universo e do lugar que ocupamos nele para um entendimento secular em essência. Esse movimento não tem sido uma evolução cultural uniforme; tem acontecido com ritmos diferentes e em diferentes graus pelo mundo afora. A ficção científica é um importante indicador cultural dessa mudança.
Página 62
Obra e realidade
Inevitavelmente vão me perguntar: mas e aí, você concorda com ele sobre a Reforma Protestante? Eu curti muito a pesquisa e toda a argumentação e acredito que o livro é um novo vento de discussão para a ficção científica que é um gênero espinhoso de se definir, quanto mais colocar numa caixinha. E acho válida a teoria do autor sobre a Reforma ser um ponto de origem ou até de revitalização. Mas não consigo ver como já sendo ficção científica. Se eu pegasse um livro como Guerra do Velho, de John Scalzi e desse para Luciano de Samósata, escritor do século I d.C., que escreveu sobre uma fantástica viagem à Lua onde encontraram seres lunares, ele entenderia?Acredito que o autor descartou de imediato a questão da protoficção científica e colocou tudo num mesmo balaio e aí eu já acho que deveria haver uma diferenciação. Até porque daqui 200 anos no futuro, tudo o que estamos produzindo agora será considerado clássico. Quem sabe até mesmo protoficção. Então está tudo limitado ao tempo em que a obra foi escrita e Adam meio que passa a nave estelar por cima de tudo e coloca tudo sob um mesmo guarda-chuva. Como disse, a pesquisa não está descartada, acho que é mais que válida, é essencial e deve ser discutida. O próprio autor diz que nada está fechado e estanque e convida os leitores para a discussão.
A pesquisa também está centrada no Ocidente, com menção à ficção científica brasileira, então é uma visão enviesada, querendo ou não. Não temos acesso a outros relatos do Oriente, enredos chineses, ou árabes, e isso limita um pouco a visão que temos do gênero em si se for para ser avaliado como sendo "a verdadeira história".
Adam Roberts é professor de literatura do século XIX na Universidade de Londres, além de ser autor de várias obras de ficção científica e ensaios críticos sobre o gênero.
Pontos positivos
Bem pesquisadoMuitas fontes
Ótimas discussões sobre FC
Pontos negativos
Pode ser lento e repetitivo em algumas partes
Erros de revisão e tradução
Avaliação do MS?
Um fã de ficção científica, um curioso ou um estudioso de FC ficarão empolgadíssimos com este livro, pois ele é mesmo essencial. Concordando ou não com o autor sobre as origens do gênero, a discussão gerada por ele a respeito é mais do que válida. A FC está em constante evolução e por isso precisa estar sem em discussão e avaliação.O livro atende a estas expectativas e ainda gera um conhecimento válido para consulta e pesquisa. Leitura obrigatória!
Até mais! 📡
Boa noite, capitã.
ResponderExcluirAcho que é a primeira vez que comento no blog (apesar de acompanha-lo há um tempo).
Acabei de ler sua resenha (depois de escutar o episódio do Espada e Planeta na qual você comenta do livro) e achei interessantíssimo sua crítica a certa generalização que o autor aplica a pesquisa. Isso me lembrou da leitura que fiz do livro "Nossos deuses são super-heróis" de Christopher Knowles, na qual o autor usa o termo "super-herói" para descrever certas figuras histórias (como Alexandre, o Grande, por exemplo)e como tal aplicação me deixou muito, muito incomodado, principalmente por que não há nenhuma citação que possa justificar a aplicação da expressão.
Fiquei bastante interessado em adquirir o livro, e aproveito para fazer-lhe duas perguntas acerca do mesmo:
1ª O autor descreve os subgêneros da ficção científica (explicando o significado deles, seja em parágrafos, seja em capítulos)?
2ª Você saberia indicar algum livro sobre a história da ficção científica que defenda uma tese diferente da construida por Adam Roberts? O fato de você ter discordado do autor me chamou atenção; acabei me lembrando de como eu fico pistola toda vez que algum livro sobre a história das histórias em quadrinhos traça as origens dos gibizinhos nos desenhos nas paredes das cavernas ou nos hieróglifos. Fora que, minha formação em História me obriga a comparar autores, para meu pesadelo pessoa Hahahahaha
Mais uma vez, parabéns pelos textos do blog e pelos podcasts também!
Vida longa e próspera, capitã!