O Conto da Aia não é mais só uma ficção




Leia a resenha de O Conto da Aia

Margaret Atwood disse uma vez que existem livros que assombram o escritor, livros que assombram o leitor e livros que assombram a ambos. E O Conto da Aia (The Handmaid's Tale) é um desses livros. Sem nunca perder a relevância desde seu lançamento, em 1985, ele foi recentemente adaptado para a televisão pela Amazon (dona da Hulu) e seu enredo poderoso vem sendo usado como ferramenta de militância e protesto em tempos onde o corpo da mulher está perdendo a pouca autonomia que tem.

A autora também disse que não colocou nada no livro que já não tenha existido na sociedade humana. E é aqui que a linha que separa realidade e ficção se parte, pois a série mostra um futuro não especificado com doses reais que vem incomodado a audiência. O Conto da Aia acabou se tornando uma advertência e não mais uma mera obra de ficção, um mero livro adaptado para a TV e para o grande público.

Para quem não está familiarizada, o cenário é de uma teocracia militarista e fundamentalista chamada Gilead, onde a radiação deixou parte da população estéril. As mulheres que ainda estão aptas a conceber uma criança são convocadas de maneira não-voluntária para serem aias, parideiras escravas da classe dominante, onde são violentadas pelos comandantes designados, na presença da esposa, em um suposto ritual. A aia nada mais é que um útero ambulante, sem desejos, sem vaidades, desprovida de direitos, voz e independência. Elas usam vermelho como o símbolo da função, já que vermelho é a cor do sangue, cor da menstruação.

Gilead pode ser encontrado em muitos lugares. Quando mulheres são cobradas para serem modestas, para cobrirem seus corpos porque ele serve de provocação, quando não podem ter ambição, quando são obrigadas a ter relação com o marido ou namorado sem nenhuma vontade porque "é seu dever servir", quando seus clitóris são extirpados porque sentir prazer é uma abominação e um "comportamento não desejado" para uma mulher, quando lésbicas são consideradas "traidoras do gênero". Ainda há países onde se o estuprador se casar com a vítima, ele não é punido pelo crime. E onde mulheres precisam conviver com seus estupradores "para não perderem a honra".

Nos Estados Unidos, mulheres estão se vestindo de aias para protestar contra as medidas misóginas do governo Trump como a de autorizar estados a parar de financiar planejamento familiar e até de prover aconselhamento em clínicas de aborto. Sua tentativa de destruir o Obamacare vai afetar principalmente mulheres pobres, que antes não tinham acesso a cuidado médico e remédios e podem perder tudo. No Brasil, o ataque é de longa data, sendo usado como moeda eleitoral para conseguir votos da população conservadora que não entende a urgência da discussão a respeito do aborto.

A cultura de Gilead é a mesma que atribui à mulher a culpa pelas violências que sofre, que quer lhe impôr estagnados papeis de gênero, onde ela não pode exercer sua sexualidade e independência. O fato de a mulher em Gilead ser apenas um receptáculo para a concepção é um reflexo do que temos no mundo real, onde as pessoas fingem que se preocupam com os fetos ao protestarem contra o aborto, quando na verdade elas querem apenas exercer domínio sobre o corpo da mulher. Poucas coisas assustam tanto uma sociedade quanto mulheres que não estejam sob seu controle.

A questão é que obrigar a mulher a ser mãe é uma forma de controle, e ter controle sobre as pessoas é bom.

Revista Azmina

Mulheres que não tiveram o privilégio de estar no topo da sociedade, como esposas de líderes, acabam alocadas em uma dessas categorias: parideira, doméstica ou prostituta. Não há possibilidade de ascensão social neste mundo. Classificar as mulheres desta forma é a concretização da misoginia, pois se uma sociedade só enxerga estas funções para as mulheres, jamais vai admitir mulheres engenheiras, astronautas, diretoras de cinema.

Há ainda um terrível paralelo da série com a realidade de mulheres oprimindo mulheres, como no caso de Tia Lídia, que humilha as novas aias em treinamento, atribuindo-lhes a culpa pelas violências que sofreram e fazendo slut-shaming. Para muitas mulheres, se aliar ao lado opressor não é apenas pela oportunidade de exercer algum poder, mas também de garantir uma proteção que elas acreditam que receberão. Sabemos que não é assim.

É assustador traçar os paralelos do livro e da série com a realidade, porque encontraremos vários. Mas obras como esta sempre servirão de alertas enquanto tivermos uma sociedade que desrespeita as pessoas baseada em cor, gênero, sexualidade, etnia. E devemos nos apropriar delas para garantir a resistência.

Até mais.

How 'The Handmaid's Tale' has become the meme of the resistance - Mashable

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Comentários

  1. Confesso que não conhecia o livro. Assisti a série com um incômodo indescritível! Todo episódio me fazia sentir o estômago embrulhar. Essa sensação não é só de estar assistindo tanta violência contra mulheres, mas também de justamente conseguir perceber que nada ali é novo. Tudo aconteceu e continua acontecendo. É muito assustador.

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  2. O livro está no meu top de leituras mas já comecei a ver a série há algum tempo. Sinto sempre uma raiva incrível ao vê-la (e um pouco de incómodo). É realmente perturbador ver como "O Conto da Aia", apesar de ser uma distopia "longínqua" se assemelha tanto à nossa realidade. Grrrr :(

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