Resenha: Nós, de Ievguêni Zamiátin

Um dos grandes clássicos da ficção científica ganhou uma edição primorosa da Editora Aleph. A obra, até então inédita no Brasil, foi traduzida diretamente do russo, sendo que ela foi publicada pela primeira vez em 1924. Mesmo não tendo sido exatamente a primeira distopia a tratar de estados totalitários disfarçados de mundos utópicos, o livro de Zamiátin lançou as tendências das distopias seguintes, gerando obras de extrema importância para a literatura e para a ficção científica.

Este livro foi uma cortesia da Editora Aleph


O livro
Não existe revolução final, as revoluções são infinitas.

D-503, é um engenheiro ingênuo, muito orgulhoso da sociedade em que vive e um fiel defensor dela. Engenheiro-chefe da Integral, uma nave cuja missão é levar a sociedade atual para outros mundos, D-503 começa a narrar em um diário sua vida, suas impressões sobre ela e sobre a antiga sociedade que ruiu para dar origem a esse mundo "perfeito". A Guerra de 200 Anos dizimou o antigo mundo, criando esse lugar isolado da natureza e do restante do planeta, mantido pelo governo e personificado pela imagem do Benfeitor, aquele que a todos rege, e regido pelos Guardiões.


As pessoas vivem em apartamentos de vidro, onde a vigília é constante, a todo momento. Ao invés de se valer de tecnologia para a todos vigiar, coloque seus cidadãos como os fiéis vigias do Estado. Genial e cruel, não é mesmo? É o Estado que estipula a hora de comer, de trabalhar, de lazer e até de fazer sexo, o único momento em que você pode fechar as cortinas de seu apartamento. Cada capítulo é uma anotação de D-503 em seu diário.

Eu sou D-503, o construtor da 'Integral', apenas mais um dos matemáticos do Estado Único. Minha pena, habituada às cifras, não tem o poder de criar músicas com assonâncias e rimas. Apenas tentarei registrar aquilo que vejo, o que penso - ou, mais exatamente, o que nós pensamos (precisamente: nós, e 'Nós' será o título das minhas anotações).

Página 17

As pessoas deste mundo veem a sociedade de antes da guerra como selvagem. Liberdade é sinônimo de uma desorganização selvagem. D-503 não entende como que as pessoas viviam sem as regras rígidas do Estado Único. Somos criaturas de limitada inteligência de seu ponto de vista. Era proibido matar uma pessoas, mas não era proibido matar milhões aos poucos. As eleições de antes eram desorganizadas; imagine você sequer conhecer o resultado das eleições de antemão? Que absurdo!

A vida de D-503 chega a ser sem graça conforme ele a narra para os alienígenas que forem tocados pela Integral, mas nos é fascinante por permitir que possamos conhecer este mundo. Seus escritos se intensificam quando ele conhece uma mulher chamada I-330, por quem ele se apaixona, mas a quem ele repudia por ser uma criminosa. Afinal, ela mente para faltar ao trabalho, fuma e usa roupas além do macacão obrigatório do Estado Único. A partir daí, sua vida entra em uma louca espiral de lealdade ao Estado Único batendo de frente com o amor por I-330.

Chega a ser desesperadora a forma como D-503 olha para a nossa sociedade. Nós somos o passado da sociedade dele e por mais cômicas que suas observações pareçam, elas também são carregadas de uma verdade terrível. Porém, seu precioso Estado Único, que para sua visão é um mundo utópico, esconde uma horrível verdade: a de ser totalitário, de controlar cada minuto da vida de seus cidadãos, de não tolerar a diversidade de ideias, de pessoas, de culturas. Chega a lembrar a Coreia do Norte atual.

A edição da Aleph está perfeita. O trabalho gráfico, a cor, a capa dura e os bônus que ela traz: uma resenha de Nós por ninguém menos que George Orwell e uma carta escrita por Zamiátin a ninguém menos que Stálin, pedindo para o estadista reconsiderar a punição a ele por simplesmente dizer a verdade em seus textos. Meu estranhamento veio com a narrativa de Zamiátin e o fato de seu protagonista não terminar as frases, tudo fica nas reticências e aquilo começou a me desesperar em determinados momentos. Porém, acredito que seja uma característica russa, pois nos livros da Svetlana Aleksiévitch existem frases praticamente idênticas. E parabéns à tradutora por conseguir trazer o russo dos anos 1920 para 2017.

Ficção e realidade
Zamiátin escreveu Nós poucos anos depois da Revolução Russa. Seus escritos sobre comunismo, antes e depois da revolução o levaram a um exílio forçado do meio literário, onde muitas revistas se recusavam a publicá-lo, por medo de repressão. Na Revolução de 1905, Zamiátin militou pela reforma do sistema czarista e foi preso e enviado para a solitária na prisão de Spalernaja. Seus trabalhos passaram a ser perseguidos e destruídos em seu país de origem, até que ele foi preso e foi libertado por intermédio de Maxim Gorky. Zamiátin mudou-se para a França, mas morreu na pobreza, seis anos depois.


É até um pouco difícil perceber quais são as inclinações políticas de Zamiátin através de seus trabalhos. Ele ficava horrorizado com a perseguição aos comunistas, mesmo fazendo críticas ao sistema, sem nunca adotar uma postura totalmente contrária. Era a favor do coletivismo, mas repudiava a repressão às artes que acabou por calar suas palavras. Fosse qual fosse, suas obras inspiraram outros autores a escrever essa literatura perigosa para o status quo, por questionar, enaltecer diferenças e se valer do meio ficcional para falar verdades que ele mesmo era impedido de revelar devido à censura.

No código penal soviético, a punição alternativa à morte é a deportação do criminoso de seu país. Se eu for verdadeiramente um criminoso que merece punição, não creio que mereça uma punição tão grave quando a morte literária.

Página 330
Pontos positivos
Capa-dura
Distopia
Traduzido direto do russo
Pontos negativos
Leitura devagar
O protagonista não termina as frases!


Título: Nós
Título original: Мы
Autor: Ievguêni Zamiátin
Tradutora: Gabriela Soares
Editora: Aleph
Páginas: 344
Ano de lançamento: 2017
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Ievguêni Zamiátin nunca pode aproveitar do sucesso de seus escritos. Por conta deles sofreu perseguição, foi preso, ridicularizado, jogado na prisão e morreu na pobreza, de infarto, com apenas 53 anos. Sua chamada "literatura danosa", mexeu com as estruturas das palavras, influenciando muitos autores seguintes a fazer suas próprias críticas, a criar seus próprios personagens, por vezes apoiando o sistema, por vezes destruindo-o por dentro. De uma relevância história e literária ímpar, é aquele livro para você ter na estante e ler sempre que for possível. Não se assuste com a narrativa russa e com os momentos de lentidão, invista! Selo essencial merecido.

До свидания!

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