Como Star Trek tratou questões LGBTQIA+?

O dia 28 de junho é o Dia Internacional do Orgulho LGBT. Em homenagem à data, durante o mês de junho, portais nerds feministas se juntaram em uma ação coletiva para discutir temas pertinentes à data e à cultura pop, trazendo análises, resenhas, entrevistas e críticas que tragam novas e instigantes reflexões e visões. São eles: Nebulla, Delirium Nerd, Ideias em Roxo, Momentum Saga, Nó de Oito, Preta, Nerd & Burning Hell, Prosa Livre, Valkírias e Séries por Elas.
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O logo e o título Star Trek com a bandeira do arco-íris por baixo

Star Trek surgiu com o conceito de uma humanidade unida, que abraça as diferenças, que não faz distinção de cor, sexo, gênero, raça. Onde você pode ser o que quiser. Infelizmente a série esbarrou nos preconceitos de nossa realidade, em especial com a censura de estúdios e executivos que não viam com bons olhos essa "diversidade toda". Quando o primeiro piloto da série clássica foi assistido, ninguém acreditava que uma mulher pudesse ser a primeira oficial de uma nave estelar. E Spock, era visto como demoníaco com aquelas orelhas pontudas. Sabemos bem qual personagem se tornou icônico através da escolha do estúdio.

No que tange às questões LGBTQIA+ e à representatividade, Star Trek tratou de forma bastante tímida, com abordagens consideradas agressivas para a época. Se a gente analisar todas as séries e filmes, foi apenas no Abramverse que um personagem abertamente gay apareceu e foi uma linda representação com Sulu com sua família. A representatividade acabou sendo mais velada e utilizada em diálogos ou personagens alienígenas no universo canônico e não com um personagem abertamente gay, bissexual, trans* ou lésbica.

Sobre Culbert e Stamets, em Star Trek Discovery, leia aqui.

Existiram cinco grandes momentos nas séries que podemos dizer que dialogaram diretamente com questões LGBT. Infelizmente, são cinco episódios em mais de 700, se somarmos todas as temporadas, de todas as séries. Todas as séries estão disponíveis na Netflix se você quiser assistir a esses episódios.

5. "Stigma" - Enterprise (Episódio 14, 2ª temporada)
Este episódio traça um paralelo com a história da epidemia de AIDS nos anos 80, nos Estados Unidos. Passando-se 100 anos antes da série clássica, a primeira oficial da Enterprise, a vulcana T'Pol, contraiu a Síndrome de Pa’nar após sofrer um estupro telepático através de um elo mental. O elo mental é considerado um ato não natural para a sociedade vulcana desta época, e acreditava-se que eram executados por "degenerados". Devido ao estigma sobre as pessoas doentes com Pa’nar, os médicos vulcanos não pesquisavam por uma cura, nem mesmo discutiam medidas de prevenção para impedir o avanço da doença. O preconceito vulcano estava condenando essas pessoas ao esquecimento e degeneração mental por puro preconceito. É então que Archer nos dá um belo discurso sobre como a raça humana já foi preconceituosa, mas ela aprendeu a duras penas a abraçar a diversidade e a desejá-la.

4. "Chimera" - Star Trek: Deep Space Nine (Episódio 14, 7ª temporada)
Odo é um metamorfo. Ele pode assumir a forma de qualquer objeto e passa por momentos de regeneração ao se tornar líquido. Eis então que um dia ele conhece um igual, chamado Laas, que não entende a necessidade de Odo de se manter em forma sólida ou de imitar outros seres humanoides. Odo, por sua vez, enfrenta o preconceito escancarado de colegas da estação, alguns grandes amigos seus, que alegam que está tudo bem ser metamorfo, mas assumir outras formas ou existir de forma que não seja humanoide aí já é demais. Há inclusive um diálogo de Quark e Odo, em que Quark diz: agora não é hora de uma parada do orgulho metamorfo pela estação.

3. "The Host" - Star Trek: A Nova Geração (Episódio 23, 4ª temporada)
Neste episódio, a Dra. Crusher se apaixona por um diplomata alienígena chamado Odan. Odan tem um simbionte e quando ele é mortalmente ferido, o simbionte precisa ser transferido com urgência. Riker recebe o simbionte temporariamente, reassumindo o romance com Beverly, mas quando o simbionte é transferido novamente para uma mulher, que será a hospedeira definitiva, a Dra. Crusher se decepciona. Ela alega que não conseguiria viver com uma pessoa que muda de aparência constantemente, no entanto a decepção é pelo fato de a nova hospedeira ser uma mulher. E que esperava que um dia as formas de amar não fossem tão limitadas e que talvez fosse uma falha humana.

2. "The Outcast" - Star Trek: A Nova Geração (Episódio 17, 5ª temporada)
Este foi um dos mais diretos e significativos episódios a usar alegorias para tratar de assuntos LGBT. A Enterprise encontra a raça dos J’Naii, que não possuem gênero, são todos completamente andróginos. Porém, em uma missão com um indivíduo J’Naii chamado Soren, Riker se apaixona e fica sabendo que nem todos os J’Naii são sem gênero, e que eles sentem atração por um ou outro. Porém, a sociedade J’Naii os considera doentes, anormais, que precisam de terapia ("cura gay" aqui) e quando os dois são flagrados se beijando, Soren é denunciada às autoridades. Em sua defesa, Soren diz que é preciso discutir urgente a situação das pessoas que se sentem diferente dos demais, no entanto ela acaba levada para a terapia.

1. "Rejoined" - Star Trek: Deep Space Nine (Episódio 5, 4ª temporada)
O primeiro beijo entre pessoas do mesmo sexo em Star Trek. A produção recebeu ódio gratuito da audiência homofóbica que não gostou da cena. Jadzia Dax e Lenara Kahn são Trill, uma espécie que existe em simbiose com outra espécie, implantada em seus corpos. Esse simbionte não tem gênero. Ele adota o gênero e a sexualidade de seus hospedeiros. Quando Dax tinha um corpo masculino, ele foi casado com Kahn, que tinha um corpo feminino. Agora Dax tem uma hospedeira, e as duas se reencontram em DS9, precisando trabalhar juntas. A sociedade Trill impede que os simbiontes reatem relacionamentos do passado, mas o amor entre elas é visível e Dax chega a pensar em abandonar tudo para continuar vivendo seu amor por Kahn.

Star Trek abordou o tema de outras maneiras, porém no caso do episódio "Crossover", de Deep Space Nine, eles colocam uma personagem bissexual, que por sua vez é a forma corrupta da major Kira Nerys, que é hetero, em um universo paralelo decadente. Nenhum dos mocinhos da história apareceu com essa "inversão", apenas a vilã. Esse é um exemplo de representatividade que coloca a representatividade no lado mau da história. Aliás, é um recurso muito usado na ficção científica e fantasia, em especial no Estados Unidos. Quando um enredo precisa de coadjuvantes, os autores e roteiristas apelam para a "diversidade". Mas os protagonistas seguem um padrão bem conhecido.

Existem também diálogos como esse que mostram que os roteiristas tentavam escapar da censura de estúdios e fãs. Também é de Deep Space Nine, episódio "Rules of Acquisition", em que Jadzia conversa com Pel a respeito de Quark:

Dax: Não me importa o que os outros digam, eu amo Quark.
Pel: Eu também.
Dax: Você o ama mesmo, não é?
Pel: O que?
Dax: Você ama Quark. Nem se incomode em negar, já vi o jeito que você o olha.
Pel: Por favor, fale baixo!
Dax: Ele sabe?
Pel: Ele nem sabe que eu sou mulher.
Dax: VOCÊ É MULHER?

A sociedade Ferengi é extremamente misógina. As mulheres não têm direito nem mesmo a usar roupas. Pel decide se vestir de homem para poder participar da sociedade, mas se apaixona por Quark no processo, dono do bar mais agitado da estação. Dax nem tinha ideia que Pel pudesse ser uma mulher embaixo daquela roupa e das orelhas falsas, mas esse diálogo indica como a homossexualidade é aceita sem problemas na Federação, ou pelo menos na sociedade Trill. É parte da diversidade humana, ninguém pensa a respeito, pois não há preconceito.

Infelizmente, é em DS9 em que temos um dos piores episódios já produzidos pela franquia, chamado "Profit And Lace", carregado de todos os estereótipos negativos que tanto queremos combater contra mulheres cis e mulheres trans*. Quark se veste de mulher devido à uma delicada negociação comercial. A série acertou em tantas coisas, mas resolveu colocar uma representação fraca e ofensiva, que decepcionou muitos fãs da série.

Aliás, fica aqui um pensamento a respeito da sexualidade de Sulu, que foi tão debatida e questionada por muitos que se dizem fãs. No universo canônico de Star Trek, ninguém disse que Sulu era casado. Mas a heterossexualidade compulsória admite que ele seria, pelo fato de ter uma filha. Não, ele não precisa ser hetero nem para ter filha, nem para ser piloto, ou capitão de uma nave estelar.

Acontece que a homossexualidade em todos esses casos não era uma característica inerente dos personagens. Eram apenas situações causadas por um evento relacionado à uma condição incomum produzida pela ficção científica. Houve uma tentativa de trazer o assunto de maneira direta, com um casal gay à bordo da Enterprise, em A Nova Geração, em um episódio chamado "Blood and Fire". Depois de várias tentativas, de reescrever o roteiro e de bater de frente com os executivos do estúdio, o episódio que tratava de uma metáfora para a epidemia de AIDS nos anos 80, acabou não sendo produzido. Ele foi filmado por fãs, em Star Trek: New Voyages.
O beijo de Lenara e Jadzia - Deep Space Nine

Muita gente questiona se Star Trek precisa de representatividade LGBTQIA+. É necessário falar abertamente sobre isso, já que essa sociedade futurista e utópica já resolveu seus problemas com grupos minoritários? Sim, é necessário sim. Primeiro, temos a questão da heterossexualidade compulsória, que baixa um padrão para todos os personagens. Foi isso que causou repulsa de algumas pessoas com a homossexualidade assumida de Sulu, pois todo mundo presumiu que ele era hetero. Segundo, obras de entretenimento são formas de diálogo entre arte e experiências coletivas. Por mais que Star Trek esteja num futuro onde nossos problemas atuais praticamente acabaram, ela se vale de alienígenas e sociedades preconceituosas para trazer os problemas de hoje para os cenários futuros. É a forma da ficção científica apertar a ferida, como ela sempre fez.

E o mais importante de tudo: representatividade IMPORTA. Uhura inspirou meninas negras a serem o que quisessem ser, atrizes, comediantes, astronautas, militares. Capitã Janeway causou um forte impacto em minha mente adolescente enquanto eu acompanhava os episódios, fielmente, toda semana e em milhares de outras fãs. Dana Scully levou mulheres a procurar carreira no FBI e na medicina. Annelise Keating tem levado mulheres negras a buscar a carreira no direito e no meio acadêmico. Pense o que um capitão de uma nave estelar sendo gay ou trans* poderia inspirar? Você não pode ser o que você não vê, já que somos educados pelo EXEMPLO.

E é o exemplo que também leva pessoas a serem misóginas, homofóbicas, racistas. Ninguém nasce odiando outro ser humano, isso é ensinado, condicionado. Amor e respeito devem nortear a experiência humana, acima de tudo, pois amor é amor.

Até mais! 🌈

PS: Obrigada ao Artur, do Prosa Livre pelo lindo banner do arco-íris!

Leia também:
Gays, Lesbians & Star Trek - Trekspertise
Trill Gender and Sexuality Metaphors in ‘Star Trek’ - Bitch Flicks
Homossexualidade em Star Trek - Teia Neuronial
Star Trek Beyond, and LGBT representation in the Trek series - Den of Geek
Sulu Being Gay Is A Triumph, After Star Trek's Long Struggle Against LGBT Censorship - Movie Pilot

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