A hipersexualização de Sete de Nove

Recebei recentemente um comentário, no mínimo, curioso. A pessoa - provavelmente um paraquedista no blog e não um leitor regular - comentou que eu tinha um tom de "rancor" ao falar da personagem Sete de Nove, de Star Trek Voyager. E que ela era uma "quebra de padrão" de personagens femininas, especialmente o estereótipo da "loira burra" e que ela podia sim ser maravilhosa, inteligente e sexy, sem ser desmerecida por isso. Que ela era livre. Ou seja, eu tinha rancor, provavelmente, pelo fato de a personagem ser bonita e sexy. AHAM.

Eu já vinha ensaiando um post sobre Sete de Nove, mas faltava esse estímulo para finalizar. Não, ela não liberta ninguém, porque a objetificação e sexualização de uma mulher não é um sinal de liberdade. Na verdade, Sete de Nove está presa na mesma lógica machista que a criou: a der se a "eye candy", a "space babe", quando a audiência de Voyager começou a cair e os produtores tiveram a ~genial~ ideia de colocar uma mina de collant apertadinho para atrair o público masculino. Público masculino esse que tem vindo nesse post reforçar tudo o que foi escrito aqui, ao defender Sete de Nove como eye candy.

Sete de Nove e Hipersexualização


Quem é Sete de Nove?
É uma personagem da série Star Trek Voyager, que foi ao ar entre os anos de 1995 e 2001 e voltou à Netflix Brasil faz pouco tempo. A personagem entrou para o time da nave Voyager, perdida no Quadrante Delta, no começo da quarta temporada e ficou até o final. Originalmente, Sete se chama Anika Hansen, é humana, mas foi assimilada pela perigosa coletividade dos Borg, teve sua individualidade suprimida e agora luta para ser um indivíduo novamente, um caminho que é bem difícil. Sete de Nove é uma abreviação para seu nome Borg: Sete de Nove Adjunto Terciário da Unimatrix Zero-Um. Ela é interpretada pela atriz Jeri Ryan, que já contou várias vezes sobre o terrível incômodo de interpretar Sete.

A ideia dos produtores era tentar alavancar a audiência da série que veio caindo vertiginosamente naquela terceira temporada. Existiam apenas três personagens femininas de destaque, nenhuma nelas com o male gaze que tantas séries têm por aí, com mulher sensuais em roupas justinhas em papéis coadjuvantes. Além da capitã Janeway, uma mulher mais madura, tínhamos Kes, que adicionava um certo componente infantil à tripulação, e a forte B'Ellana Torres, chefe da engenharia, metade Klingon, metade humana. Nenhuma delas era sexualizada.

Na tentativa de atrair o público masculino para a série que é hoje considerada uma das séries mais feministas da televisão, eles tentaram sexualizar Kes. Sai o ar infantil e as roupinhas funcionais, entram o cabelão ondulado, o collant apertado e o salto alto.


No fim, os produtores resolveram dispensar a atriz Jennifer Lien, Kes, para dar espaço a Jeri Ryan. Inicialmente, eles iam tirar o Alferes Kim, mas por ele ter um grande apelo com o público e por ter sido considerado um dos homens mais sexys da televisão, quem foi cortada foi Jennifer.

A roupa
Jeri Ryan comentou que desmaiou duas vezes no set de filmagens ao usar a roupa Borg completa. Além de ser muito justa no corpo, ela também apertava demais seu pescoço, pressionando as artérias e veias, o que a fez ter um colapso nas gravações. Ajustaram o figurino e dois episódios depois, ela é tornada humana novamente, com parte de seus complicados implantes retirados, agora integrante da nave, já que devolvê-la aos Borgs seria uma quebra na segurança. Começa então a tarefa árdua da capitã Janeway de trazer este ser humano de volta para a humanidade, há tanto tempo suprimida.

A justificativa para usar uma roupa tão colada é que ela serviria para regenerar a pele de Sete de Nove, ferida de tantos implantes e nanosondas Borgs. Então, a roupa serviria como uma segunda pele para proteger a verdadeira. A gente sabe que isso tudo é balela para justificar uma roupa tão colada. Dava para usar essa fina segunda pele miraculosa embaixo de um uniforme da Frota Estelar, por exemplo. Além disso, ela usava um espartilho super apertado por baixo do macacão, que deixa aquelas marcas estriadas na cintura e no tórax. A explicação para eles eram "implantes borgs". Era tão apertado, que era preciso ter enfermeiros com cilindros de oxigênio para ajudar a atriz a respirar, até que ENFIM, alguém teve a brilhante ideia de afrouxá-lo um pouco.

O espartilho também contava com seios falsos, pois a roupa era tão apertada que achatava os seios da atriz e deixava os mamilos em destaque. Assim, com o conjunto completo, Sete parecia basicamente feita de cera. A atriz não conseguia sentar ou mesmo se curvar usando a roupa. Foi quando alteraram seu uniforme para as cores marrom e vinho, onde ela não precisava usar o espartilho completo. Além de toda essa roupa colada que desmaia mulheres, espartilhos apertados e desconfortáveis, ela usava saltos altos (que não havia necessidade alguma). E cada ida ao banheiro levava quase meia hora, para tirar e vestir a roupa tudo de novo.

A hipersexualização
Dados do Instituto Geena Davis de Gênero e Mídia, mostram que as mulheres aparecem três vezes menos que os homens nos filmes de classificação livre. Porém, se elas aparecem em tela, as chances são quatro vezes maiores de aparecerem de forma sexy, como corpos delineados, roupas justas, curtas, decotadas. O enquadramento da câmera também reforça a sexualização da personagem focando seios, bunda, pouca pele e poses tidas como sensuais.

Muita gente tenta justificar a hipersexualização feminina com a palavra mágica “contexto”. “Era assim na idade média”, “é assim com os gângsters”, “é assim nessa (insira uma época/local). E a gente sempre volta para o bom e velho “na idade média não existiam dragões” ou “gângsters não têm super-poderes” e etc. É muito fácil achar justificativas para o machismo e a misoginia que suportam o tipo de representação feminina que diminui personagens femininas a objetos sexuais, difícil é construir um trabalho que seja coerente com a trama e que ao mesmo tempo não subjugue nenhuma de suas personagens.

Nebulla (link inativo)


Sete de Nove em seu primeiro "uniforme"

As personagens femininas são objetificadas, ou seja, são tornadas meros objetos, cujo único valor está na capacidade de ser bonita e sensual, estando em uma determinada narrativa apenas pelo apelo sexual/visual, para chamar público mesmo. Sete de Nove foi pensada desta maneira, para alavancar a audiência, em declínio.

De 2006 a 2009, nenhuma (eu disse nenhuma) das personagens nesses filmes estava nos campos da medicina, da ciência, da lei ou da política – os números mostram, ainda, que nesses filmes 80,5% dos trabalhadores eram homens – sendo que, na vida real, as mulheres representam 50% da força trabalhadora.

(...)

Todas essas mulheres surreais das minhas obras de ficção favoritas me ensinaram que não importa quão bem você atire, crie fórmulas matemáticas, lute contra bandidos ou salve o mundo de zumbis: é sempre o seu corpo que importa, acima de tudo – menos dos homens.

Feminismo na Prática

Sete de Nove foi uma personagem bem trabalhada em diversos episódios, tornou-se parte vital da tripulação e da sobrevivência da nave em território hostil por seu amplo conhecimento e habilidade. Sim, ela trabalhava em pé, de salto alto e espartilho, o que é péssimo, mas a justificativa é que Borgs são resistentes e não necessitam de repouso. Mas sempre me incomodou o fato de Sete de Nove dormir no setor de carga, pois ela precisava regenerar seus implantes cibernéticos e terem trabalhado tão pouco questões de sexualidade, por exemplo. A série poderia ter humanizado mais essa super-mulher e não o fez. Então, enquanto todos os personagens dormiam em suas camas quentinhas da Frota Estelar, Sete de Nove dormia em pé, se regenerando em uma alcova Borg, durante horas. Eles não se esforçaram para desobjetificar essa mulher, nem de reforçar o fato de que ela é um ser humano. O importante era ser eye candy.

Colocar uma personagem hipersexualizada, que mal pode respirar, é reforçar os estereótipos femininos e todas as capas de revistas femininas na banca. Você tem valor sim, é ótima na astrometria, mas o que importa mesmo é estar com o cabelo impecável e trabalhando de salto alto e espartilho. É reforçar que essa é a imagem que todas nós devemos seguir, que você tem que ser magra e esbelta - não interessa se você desmaie por isso - loira e de olhos azuis. A capitã Janeway é tão competente quanto Sete de Nove, mas não foi sexualizada, nem seu corpo aparece em um collant apertado.

Criticar a objetificação dessas personagens não é criticar a sexualidade feminina, pois não estamos falando de mulheres reais, e sim da idealização da mulher criada por homens cis héteros. O que se critica é a ideia que esses homens têm das mulheres e que é repassado para quadrinhos, filmes e jogos.

Firehawk

E por fim...

A competitividade
Se você critica uma personagem sensual e bonita, só pode ser rancor, só pode ser inveja, certo? ERRADO! Qualquer ira na minha fala é com a forma como a personagem foi elaborada, não por estar com inveja dela. Pelamor, sabe? Existe toda uma estrutura patriarcal feita para que mulheres enxerguem nas outras mulheres uma adversária, uma competidora, um sinal de perigo. E isso se estende para as personagens ficcionais. Se você critica, é recalque #SQN. Lembro de uma vez, no mestrado, que uma colega me deu carona e antes de entrar na avenida e tomar o rumo de casa, ela deixou um rapaz atravessar a rua, elogiando a beleza dele para mim, inclusive. Quando foi a vez da moça que vinha correndo para atravessar, ela a contragosto deixou a menina passar e disse aos risos: "essa eu atropelava, mulher né?".

Gostar de uma coisa não deve te impedir de olhar criticamente para ela. Eu sou fã de Star Trek Voyager, mas sou a primeira a apontar os problemas dela e de qualquer outro produto de entretenimento que eu consuma. Fazer isso é enxergar os problemas da sociedade machista em que vivemos e que se transporta para as telas e páginas, porque são reproduzidas, são repetidas e consumidas assim. E isso não está certo. Se você não quer que ninguém aponte que sua série, filme, livro favorito é machista, racista e homofóbico, isso é ser conivente com essas práticas, admitindo você ou não. Isso não é um ataque pessoal à você.

Assim como criticar Sete de Nove é apenas reconhecer os problemas da personagem, não é inveja, não é recalque. Sete é uma personagem que admiro muito, que adoro, mas que sempre tive pena. Havia uma tristeza na personagem, pois ela lutava para se encaixar em um lugar do qual não fazia parte há muito tempo. E os roteiristas não trabalharam tão bem essa parte, fazendo com o que o final da série fosse apressado e deixando parte da audiência desgostosa com seu desfecho.

Temos sim que criticar as personagens, temos que criticar cultura nerd, não podemos ser coniventes com estes comportamentos que perpetuam estereótipos, porque assim as coisas nunca mudarão.

Vida longa e próspera! 🖖🏼

Leia também:
Star Trek e o Teste de Bechdel
O argumento do puritanismo - Firehawk
Gostar de Algo Não Deve nos Impedir de Pensar Criticamente - Nó de Oito
Como a cultura da objetificação feminina nasceu? - Linus
A sexualização das personagens femininas: e você com isso? - Feminismo na Prática
Arlequina e Mulher-Maravilha: a hipersexualização da personagem feminina - Nebulla
An Automated Analysis of Gender Representation in Popular Films - Instituto Geena Davis
A hipersexualização das super-heroínas: Da Marvel/DC Comics às Meninas Super Poderosas - Inclusive Feminists

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. A Sete me deixa triste pelos mesmos motivos. Antes de começar a assistir Voyager, achei que a odiaria porque seria uma adição puramente sensual ao Universo Star Trek, coisa que já me incomodava na série clássica, com as escravas Orion, por exemplo. Aí, quando cheguei à parte em que ela entra, me surpreendi muito, pois não só gostei da história dela como me identifiquei tanto com sua personagem que a adotei como favorita de todas as séries. Até minha mãe me chama de Seven, de tantas semelhanças de personalidade que compartilhamos. Mas sempre bateu o incômodo do uniforme absurdo (assim como o de Troi na Nova Geração) e, especialmente, por terem guiado a história dela à procura de uma "vida normal" tentando arrumar um par romântico, como se isso fosse mandatório e absolutamente necessário. Digo, tanta coisa pra ela assimilar (sem trocadilhos borgs) da vida humana, já era tudo tão difícil e frustrante pra ela, tinham que resumir toda a sua luta pessoal pelo fato de que ela não sabia se relacionar romanticamente com alguém? Ela precisava? Eu estava feliz por finalmente ter uma representação assexual em Star Trek, que tem representação de tudo, e por ser justamente alguém que se parecia comigo em tantas coisas, pra ver isso indo pro mesmo caminho imbecil de Hollywood. Li um artigo sobre isso ainda recentemente e acho que é a coisa que mais me decepciona na minha série favorita. Amo e admiro o personagem da Sete, mas gostaria que não tivesse sido tão preguiçosamente trabalhada. Por mim, por outras pessoas como eu, pela atriz e por todas as fãs que estão cansadas e ofendidas pela série, tão futurista e transgressora, ainda não saber se livrar completamente desse machismo.

    ResponderExcluir
  2. Como homem mesmo após ler a matéria não há como discordar. A tentativa de sexualização dessa personagem mais atrapalha do que ajuda.

    Qdo assisti me via pensando não havia necessidade para aquela roupa. Ela ficaria tão melhor no uniforme da Federação como todos os personagens.

    ResponderExcluir

Form for Contact Page (Do not remove)