Resenha: O Conto da Aia, de Margaret Atwood

Este é, sem dúvida, um dos livros mais perturbadores que li. Tenho problemas com a narrativa de Atwood, mas o tema me interessou, apesar do incômodo que ele causa, e vinha postergando essa leitura há muito tempo. Bem, finalmente peguei para ler e foi muito, muito difícil de terminar, ainda mais nesse momento político brasileiro onde direitos das mulheres estão sob ameaça por uma bancada reaça e fundamentalista. Assim como acontece no livro, sendo que lá uma verdadeira nação cristã fundamentalista tomou o poder.

O livro
Em um futuro próximo, a democracia e os Estados Unidos não existem mais. A única função das mulheres passa a ser a de reprodução. Mulheres não podem trabalhar, nem ter dinheiro e qualquer mulher em idade fértil é enviada para as casas dos Comandantes, que trabalham para o governo, a fim de engravidarem deles.

Resenha: O Conto da Aia, de Margaret Atwood

A história é contada do ponto de vista da Aia, chamada no livro de Offread, que significa 'De Fred", o nome do comandante. Ou seja, as mulheres perdem até mesmo o próprio nome. Não podem escrever, ler, falar sem permissão, ou manter relações afetivas. Sua narrativa vai e volta no passado e assim descobrimos que a agora República de Gilead é o que já foi os Estados Unidos da América. É uma nação opressora, fundamentalista, onde as mulheres perderam primeiro o direito de trabalhar. Depois seu dinheiro passou para a custódia dos homens da família. Em seguida, os casais que já tivessem se divorciado antes foram dissolvidos, assim como uniões estáveis.

Melhor nunca significa melhor para todo mundo, diz ele. Sempre significa pior, para alguns.

A vida da aia é inteira baseada na repressão. Nesta sociedade, as mulheres foram divididas em categorias: as esposas, as marthas, as salvadoras, as aias, assim por diante. Ela pensa constantemente na filha e no ex-companheiro nos tempos de antes, enquanto cumpre com suas funções de aia, usando seu vestido vermelho, o chapéu branco de abas largas, o corpo coberto. Uma aia precisa ser fértil. Precisa participar de um bizarro ritual onde é obrigada a ter relações sexuais com o comandante, na presença da esposa, que não gosta da aia, nem um pouco. Se uma aia não engravida, o problema é dela. Nunca do comandante. Por isso, gestações ilegais acontecem para que elas não tenham suas vidas ameaçadas.

As aias são ensinadas pelas tias em locais especializados. Lá as mulheres que foram estupradas ou abusadas, por exemplo, aprendem que tiveram culpa na violência que sofreram porque não foram recatadas o suficiente, invisíveis o suficiente. Ou seja, que não deveriam existir. Basicamente o que dizem para nós mulheres no dia a dia, o tempo todo, que nós somos culpadas pelas violências que sofremos. A narradora luta para manter a personalidade nessa vida insípida, repleta de medo e silêncio. Luta para manter um mínimo de vaidade, algo visto como frívolo. Uma vez, em alguma vida que luta para manter viva na mente, ela foi universitária, trabalhou, teve uma grande amiga, uma filha, um companheiro. Onde está sua identidade? O que está havendo com ela?

Tenho problemas com a escrita de Atwood desde que li O Ano do Dilúvio. É com a forma com que ela escreve, não com o universo nem com a crítica do livro. Apenas não consigo apreciar a leitura, parece que ela não avança. Tanto que levei semanas para terminar a leitura. No entanto, acho incrível o quanto toda a crítica que a autora fez nesta obra, cuja primeira edição foi em 1985, se mantém atual, já que as mulheres continuam passando pela mesma cultura do estupro que as personagens enfrentam no livro. A diferença é que Atwood extrapolou a situação para que as enxergássemos, algo que toda distopia costuma fazer.

Nenhuma esperança. Sei onde estou, e quem sou, e que dia é hoje. Esses são os testes, e estou sã. A sanidade é um bem valioso; eu a amealho e guardo escondida como as pessoas antigamente amealhavam e escondiam dinheiro. Economizo sanidade, de maneira a vir a ter o suficiente, quando chegar a hora.


O livro foi adaptado em 1990 com Natasha Richardson no papel de Offred, Robert Duvall como o Comandante e Faye Dunaway como sua esposa. Infelizmente ele não é tão bom quanto à série The Handmaid's Tale; foi mal dirigido e por ser adaptação deixa algumas coisas do livro de fora, mas se tiver estômago, fica aí a dica para assistir.

Obra e realidade
Foi muito difícil ler este livro nem tanto pelo estilo da Atwood, mas pelo momento em que passamos. Mulheres estão indo às ruas para protestar contra opressão, contra retirada de direitos, contra racismo, enquanto nossa bancada evangélica a lá Gilead quer dificultar o acesso das mulheres à profilaxia da gravidez e quer mesmo impedir que elas tenham informações sobre aborto nos casos previstos em lei. É um retrocesso, uma segunda violência para aquelas que já foram estupradas e precisam passar por toda uma humilhação devido à uma lei retrógrada vinda de mentes ainda mais retrógradas.

Mulheres são mortas por serem mulheres, são silenciadas na internet, perseguidas, ofendidas, apenas por darem opinião. Atwood tira o leitor da zona de conforto para falar de cultura do estupro, liberdade, direitos civis e das mulheres, poder e fundamentalismo. Esta não é uma leitura agradável, nem deveria ser, onde mulheres são culpadas pelas violências que sofrem e onde servem para apenas reprodução ou qualquer outra função fixa, sem direitos, liberdades, ou voz.

Margaret Atwood

Margaret Atwood é escritora, ensaísta e crítica literária canadense. É reconhecida com inúmeros prêmios literários internacionais importantes. Recebeu a Ordem do Canadá, a mais alta distinção em seu país.

Pontos positivos
A aia
Distopia
Crítica
Pontos negativos
Opressão
Misoginia
Tortura psicológica


Título: O Conto da Aia
Título original: The Handmaid's Tale
Autora: Margaret Atwood
Tradutora: Ana Deiró
Editora: Rocco
Ano: 2006
Páginas: 366
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Fiquei numa situação difícil na hora de classificar esse livro. Por que dizer que ele é bom se me fez sofrer tanto na leitura? Porque é preciso incomodar. É preciso mostrar as injustiças, as opressões, as liberdades revogadas. Não é difícil fazer um paralelo com o que temos enfrentado ultimamente.

É necessário sair da zona de conforto de tempos em tempos, especialmente na literatura, onde acabamos viciados em um estilo de leitura, um só tipo de livro, um grupo de autores. Não sou fã da escrita da Atwood, mas a admiro profundamente pelas coragem de tratar de tais assuntos com a crueza necessária para nos incomodar. Quatro aliens para o livro e uma recomendação para que você também leia.


Até mais!

Comentários

  1. Nossa, como assim eu nunca tinha ouvido falar desse livro? Amei tua resenha e fiquei bem curiosa para ler. Infelizmente, é aquele tipo de distopia que sabemos não ser tão fictícia assim :/ Beijos!

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  2. Olá!

    O livro virou série e fui correndo assistir (está no 3 episódio e já foi confirmada uma segunda temporada). Como eu sou desesperada e não consigo esperar, fui ler o livro. Ele acaba daquele jeito mesmo? É aquilo? Fiquei meio chocada. O livro é bom, mas achei a escrita dela maçante e um pouco confusa (culpa do Kindle?).

    Enfim. Não gostei do final.

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    Respostas
    1. O Kindle não influencia em nada na forma da escrita da autora. O estilo da Margaret é assim mesmo, infelizmente. Eu mesma não sou fã da escrita dela, mas O Conto da Aia é de extrema importância. E o final é daquele jeito mesmo.

      No CabulosoCast sobre O Conto da Aia nós analisamos o porque de o final ser assim. Dá uma olhada no Google, e ouve o podcast, que talvez ajude a descer esse final estranho.

      Obrigada pelo comentário!

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  3. Acabei de ler esse livro e que obra! O livro mexeu com o meu ser de muitas maneiras e com certeza vou relê-lo de agora em diante. A crítica que autora traz no livro vai ficar para sempre comigo, para me lembrar justamente que coisas como as que são abordadas no livro jamais deixem de ser discutidas e algo deva ser feito a respeito sempre.

    Ótima resenha! A escrita da Margaret não me incomodou tanto durante a narrativa, pelo contrário, achei-a bastante imersiva. Principalmente pela história ser narrada em primeira pessoa. Mas com relação aquele final aberto demais, eu fiquei com um gosto agridoce na boca... Apesar disso, esse livro já se tornou uma das minhas leituras mais inesquecíveis da minha vida! e jamais vou esquecer o que esse livro fez comigo.

    Não sei se terei coragem de assistir a série um dia, se o Hulu chegar oficialmente no Brasil.

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  4. Olá
    Eu gostei muito da resenha porque você conseguiu falar com mais clareza coisas que não consegui pro em palavras para falar sobre essa obra. Eu gostei da leitura? Não. É um livro excelente? Sim. É uma leitura que incomoda, que dá tapa na cara, que joga na nossa cara o rumo para o qual as coisas estão indo, e é um futuro aterrorizante. Meu maior medo é que, um dia, deixemos de ler distopias por estar vivendo em uma.

    Vidas em Preto e Branco

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