Reprodução, aborto e ficção científica


Ficção científica é um gênero muito prolífico para levantar bandeiras. Mas também para perpetuar estereótipos, preconceitos, reafirmar conservadorismos como estamos acostumados a ver em várias franquias. Quando se trata de reprodução e aborto, por exemplo, temos visões diversas e polêmicas entre os espectadores e leitores.

Assim como muita coisa pode ser diferente no futuro, reprodução é algo que aparece com bastante frequência na ficção científica, explorada de maneiras diferentes. De mundos sem crianças, com escravas sexuais, com proibição de nascimentos, sempre temos cenários que discutem a reprodução como ferramenta política, em geral para fazer críticas à nossa realidade e nossa sociedade. Temos autores pró-aborto, outros que eram veemente contra e eles se usaram da ficção para fazer isso.

Acredito que um dos universos mais perturbadores que já vi foi o de O Conto da Aia, de Margaret Atwood, publicado em 1985. Fiquei tão perturbada com o que vi no filme, que nem é tão bom assim (má direção), que ainda não consegui ler o livro que está no Kindle. Num futuro próximo, os Estados Unidos se tornaram a República de Gilead, uma teocracia totalitária cristã que derrubou o governo democrático. Após um atentado cometido por terroristas muçulmanos, o grupo Filhos de Jacó lançam uma revolução, suspendendo a Constituição com o pretexto de restabelecer a ordem. A sociedade é fortemente dividida em castas, onde cada indivíduo ocupa uma rígida posição na hierarquia, cada um com uma função específica.

Cena do filme O Conto da Aia, de 1990. 

Porém, ao fazerem isso, eles suspendem todos os direitos das mulheres. A nova sociedade, militarizada e fundamentalista cristã, tem leis e costumes baseados no Antigo Testamento. Neste mundo, praticamente todas as mulheres são proibidas de ler, de estudar ou de ter uma profissão. O Conto da Aia é centrado em Offred, uma mulher que pertence à classe social das aias (concubinas), cuja função é apenas de reprodução. Ou seja, essas mulheres, essas aias, são designadas para famílias da alta sociedade da República de Gilead, onde são forçadas a ter sexo com os chefes de família em um ritual pra lá de bizarro, na presença de suas esposas. Seus nomes mudam de acordo com o nome do chefe da família (of Fred).

Pessoas que induzam ao aborto ou aias que não engravidem podem ser linchados na rua, enforcados ou espancados. As mulheres são valorizadas por sua capacidade de reprodução. Caso contrário, viverão à margem da sociedade, como prostitutas. Margaret Atwood explora a natureza patriarcal da República de Gilead ao comparar com a nossa, que não está tão longe assim do mundo da aia Offred. A mulher é uma propriedade e somos jogadas umas contra as outras num mundo onde a reprodução é assunto de estado, enquanto nas residências mulheres são estupradas. Aliás, qualquer mulher estuprada é, imediatamente, culpada pela violência que sofreu (uma cena horrível do filme).

Admirável Mundo Novo, na febre da eugenia na Europa nos anos 30, imaginou um mundo onde as pessoas nasciam preparadas para trabalhar em tarefas específicas. O amor foi banido, como uma palavra suja e a promiscuidade era incentivada. Temos vários casos de manipulação genética, adestramento comportamental, posições estabelecidas por traços genéticos, com castas bem definidas e controladas por soma.

James Tiptree, Jr. (pseudônimo da escritora Alice Sheldon) escreveu uma novela chamada Houston, Houston, Do You Read?, onde num futuro próximo, a população da Terra foi varrida por uma praga, tendo sobrado apenas as mulheres, que se reproduziam por meio da clonagem. No melhor estilo Planeta dos Macacos, dois astronautas são desviados de curso e jogados na órbita deste futuro e tramam para tomar o poder deste mundo repleto de mulheres por se acharem líderes natos. A sociedade está estagnada após perder metade de sua população, mas as mulheres não veem vantagem em manter vivos os astronautas. Elas nem ligam para eles, na verdade, e planejam colher todo o esperma que puderem e depois matá-los.

Quando o assunto é aborto, temos posições opostas. Enquanto Philip K. Dick era um ferrenho opositor ao aborto, tendo criado contos e criado inimigos por conta de suas posições a respeito, em outros lugares vemos formas mais elegantes de lidar com o assunto, como em Battlestar Galactica, que fez uma das melhores discussões a respeito do aborto que já vi na ficção científica.

Depois de um ataque descomunal efetuado pelos Cylons, que diminuiu uma população de bilhões para menos de 50 mil pessoas, uma frota de poucas naves tenta achar um mundo seguro para pode restabelecer sua sociedade. Mas uma moça, vinda de uma colônia fundamentalista e contra o aborto, pede asilo na nave Battlestar Galactica, porque engravidou e quer abortar. A presidente Laura Roslin, defensora dos direitos das mulheres, se recusa a negar esse direito à moça, pois ela mesma lutou anos para assegurar direitos à todas as mulheres das Doze Colônias.

Mas um embate moral surge, não necessariamente por causa do procedimento ou por causa da religião. Cinquenta mil humanos, em risco de extinção, podem se dar ao luxo de perder um ser humano em potencial? Mas e quanto aos direitos das mulheres? Eles podem ser suspensos a qualquer momento, sendo dependentes da situação em que as pessoas se encontram? Resumindo, a presidente Laura Roslin autoriza o procedimento da moça, mas suspende a lei que garantia o aborto para todas as mulheres, em qualquer situação.

Presidente Laura Roslin, Battlestar Galactica. 

A gravidez da agente Dana Scully, de Arquivo X, também é uma boa amostra de como o governo pode controlar os nascimentos. Abduzida e tornada infértil quando seus óvulos foram removidos, sua gravidez foi depois induzida e ela deu à luz a um menino. Mas tudo isso foi feito de maneira sistemática, sem que nenhum dos procedimentos fosse autorizado por ela. Uma alegoria que mostra o modo como muitas mulheres precisam lidar com concepção e gravidez: obrigadas.

Se olharmos para tudo isso, veremos que o objetivo deste controle sobre a reprodução não é sobre tanto a reprodução em si, mas sim sobre população. Se controlamos o modo como as pessoas nascem, podemos controlar sua educação e criação e assim criar adultos do jeito que quisermos. É também uma questão de manipulação. Mulheres são estupradas, vilipendiadas, têm direitos suspensos, já que somos aquelas com a capacidade de carregar um bebê. O que vemos na ficção são, em geral, reflexos de nossa própria sociedade e do modo como ela enxerga reprodução, aborto, criação de crianças e educação.

Além disso, temos enredos em que mulheres querem ser donas de seus corpos, querem o direito de controlar a reprodução, querem o direito de não engravidar. Lois McMaster Bujold, por exemplo, imaginou mundos onde as mulheres não mais carregaram os bebês. Elas faziam uso de úteros artificiais, o que tirou o controle patriarcal sobre seus corpos e as sociedades foram revolucionadas.

Abdução da agente Scully, Arquivo X. 

Contudo, ainda há muito espaço para discussão e criação de mundos na ficção científica que lidem com estes temas. Gostaria de ver mais mulheres escrevendo sobre o assunto, assim como Aline Valek fez em seu conto Eu, Incubadora, que se encontra no Universo Desconstruído. Criar é preciso, discutir o assunto também.

Até mais!

Uma das obviedades sobre a ficção científica é que ela é realmente sobre o presente, mesmo que seja sobre o futuro.

Annalee Newitz


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