Resenha: Kindred - Laços de Sangue, de Octavia Butler

Após uma LONGA espera, a grande dama da ficção científica, Octavia Butler, ganhou uma tradução no Brasil, pela Editora Morro Branco, editora parceira do MS. É difícil descrever minha alegria ao ter este livro em mãos, pois há muito tempo eu vinha reclamando da ausência dele nas nossas livrarias e de tão poucas pessoas terem acesso a ele. Mas agora isso acabou! Octavia está entre nós e esse livro é mais que necessário, é vital.

Parceria Momentum Saga e Editora Morro Branco


O livro
Dana e seu marido Kevin se mudam para uma casa nova. É seu aniversário, mas o casal está colocando as coisas nos seus devidos lugares quando Dana começa a se sentir mal. Uma tontura, uma sensação horrível que parece deslocá-la de onde está. Quando nota, está na beira de um rio e uma criança está se afogando.

Resenha de Kindred - Laços de Sangue, de Octavia Butler

Sem pensar direito sobre o fato de estar na beira de um rio, ela pula na água para resgatar o garoto. Sob os protestos histéricos da mãe, ela o salva, mas ao se ver na mira de uma espingarda, Dana sente o horrível mal estar novamente e retorna para sua casa, poucos segundos depois de sumir. Kevin está atarantado, sem conseguir entender como que a esposa conseguiu se deslocar de um lugar para o outro e agora está molhada e enlameada no chão.

O evento estranho acontece de novo, dessa vez ela está no quarto do garoto, que já está alguns anos mais velho. Ele tacou fogo nas cortinas e Dana corre para salvá-lo, mais uma vez. Por que isso acontece? Pensando com seus botões, Dana começa a questionar o menino, chamado Rufus e percebe que está correndo perigo: ela voltou no tempo para uma época em que os Estados Unidos praticavam a escravidão contra negros. Dana é uma mulher, negra, em um período em que ser os dois lhe impõe uma série de desvantagens.

Era por isso que eu estava aqui? Não apenas para garantir a sobrevivência de um menininho que sempre estava em perigo, mas também para garantir a sobrevivência de minha família, meu próprio nascimento?

Página 47

Dependendo do momento histórico em que você está, ser diferente do status dominante pode ser mortal. Mulheres, negros, gays, judeus, pessoas com deficiência, albinos, qualquer "desvio" do status vigente, já é o suficiente para condenar as pessoas pelo o que elas são, por apenas existirem. Dana sabe que sua vida corre um grande risco, mas também sabe que sua existência depende do delicado relacionamento que ela estabelece com Rufus, que de um garoto indefeso passa a um senhor de escravos e fazendeiro a cada retorno de Dana.

Octavia expõe com extrema habilidade as contradições dispostas na frente de Dana sobre como ela precisa tolerar a violência contra a mulher para garantir que sua linhagem exista, a forma como o sistema se impõe sobre os indivíduos escravizados que pelo simples fato de continuarem vivos acabam resistindo à opressão. Pense na sua própria existência: você consegue dizer com 100% de certeza que alguma antepassada sua não foi estuprada ou não foi casada ainda criança com um homem muito mais velho?

Há também uma divergência bem evidente na visão que Dana e Kevin têm do período. E é óbvio porque Kevin vê o passado de maneira diferente, ele é homem, ele é branco, ele é heterossexual. O que em sua cabeça seria uma grande aventura de expansão para o Oeste, para Dana é o massacre generalizado de mais um povo, obrigado a sair de suas terras para dar lugar à exploração e à opressão.

- Esta época poderia ser ótima de se viver. – disse Kevin, certa vez. – Fico pensando que seria uma grande experiência permanecermos nela…irmos para o Oeste, para vermos a construção do país, ver quanto da mitologia do Velho Oeste é verdade.
– No Oeste – digo com amargura – é onde fazem com os indígenas o que fazem aqui com os negros!

Página 157

Não há nenhum tipo de romantização do período escravagista aqui. Em um determinado momento, Dana percebe que o holocausto conseguiu retratar e reproduzir os dois séculos de brutalidade, opressão, estupros e assassinatos contra a população negra em apenas poucos anos, dentro da Segunda Guerra Mundial. Você vai se revoltar, você vai aprender, vai chorar, mas precisa continuar a leitura.

Obrigar Dana a voltar para o passado, contra a sua vontade, em um processo que ela não possa controlar, também a torna uma escrava, uma escrava do tempo e de Rufe. Se esse garoto não sobreviver, ela nunca nascerá. Isso a coloca sob uma bolha de pânico dentro da própria casa, pois o que pode acontecer se Rufe se meter em confusão de novo e ela estiver dirigindo?

A edição que a Morro Branco me enviou é a de capa dura, uma linda edição, com um miolo incrível, bem trabalhado, além de uma biografia da autora, uma nota dos editores e questões para se discutir em um clube do livro. É uma obra para se ler e se discutir sempre que possível.


Ficção e realidade
Esse é um livro mais que pertinente para o público brasileiro, um povo que tem o péssimo habito de minimizar a escravidão. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão nas Américas, mas seus reflexos são sentidos até hoje. Compondo 52% da população, os negros são sub-representados na mídia, na propaganda, nos empregos de altos cargos, nas universidades, no judiciário, no legislativo, no executivo, nas salas de cirurgia, nas salas de reunião das grandes empresas, mas são a maioria nas periferias, a maioria que mais morre nas periferias, nos presídios, entre os empregos de garis, coletores de lixo, manobristas, babás, empregadas domésticas e a lista continua.

Nosso país assinou a Lei Áurea, mas não extinguiu a escravidão da sociedade e fez pouco ou quase nada para isso, onde alguns grupos acreditam que a escravidão foi algo bom para o povo negro, ou que não foi tão ruim assim quanto dizem, ou que ainda têm a cara de pau de dizer que também teve escravidão com os brancos e ninguém fala disso (amor, acorda). Em Kindred, Octavia arremessa na nossa cara branca nossos privilégios trazidos por sermos brancos. E faz críticas contundentes aos estereótipos conhecidos em romances que retratam o período da escravidão, como é o caso da "mãe preta".

Um país que esquece ou relativiza sua própria história tende a repeti-la. No caso do nosso país a história continua sendo repetida, relativizada, e pior, pouco estudada e discutida nas escolas e universidades. Dessa forma, a estrutura do período colonial pouco se alterou.

Octavia Butler
Octavia Butler

Octavia Butler é a grande dama da ficção científica e uma pioneira do afrofuturismo. Nos deixou cedo demais e foi publicada no Brasil apenas recentemente pela editora Morro Branco, um atraso absolutamente injustificável.

Pontos positivos
Viagem no tempo
Personagens bem construídos
Tradução
Pontos negativos
Violência


Título: Kindred - Laços de Sangue
Título original: Kindred
Autora: Octavia Butler
Tradutora: Carolina Caires Coelho
Editora: Morro Branco
Ano: 2017
Páginas: 448
Onde comprar: na Amazon, capa comum e capa dura (o ebook é em inglês)

Avaliação do MS?
Não tenho como falar mais do livro sem entregar mais fatos do enredo, por isso a única coisa que posso pedir é que você LEIA Kindred e depois volte aqui para comentar. Existem tantos aspectos, tantos ensinamentos, tantas verdades nuas e cruas para se falar, que só uma resenha, ou no caso aqui do blog duas, ainda não dariam conta. É um livro para se ler e reler. Sempre será uma experiência nova. Livro mais que indicado, ele é obrigatório.

Até mais!

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Conheci Octavia graças à capitã e devo lhe agradecer. Li o conto Blood Child e fiquei estupefato de quantas considerações novas a autoria trazia que eu ainda não havia visto em outras obras. Isso foi no começo do meu interesse por sci-fi e desde em tempo tenho embarcar em autores que trazem considerações mais profundas sobre nossa sociedade e que saiam do mainstream brasileiro em quando se fala de ficção científica.
    Quero muito ler Kindred até por conta de não saber sobra a complexidade do livro. Não sabia nem mesmo desses embates entre Dana e Kevin e a ida ao Oeste. Leitura valiosa.

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  2. Já está na minha lista, apesar de não ter e-book em português. Hoje em dia, não compro mais papel se tiver a opção do digital. :-)

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  3. Peguei esse livro logo após ter lido "Um Defeito de Cor". Foi doloroso mas muito importante.
    Só fui atrás por conta da sua resenha/indicação.
    Muito obrigada

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  4. Li logo depois de "Mulheres, Raça e Classe", de Angela Davis, e é como se a Literatura retratasse exatamente o que a História descreve, e as duas obras se complementam (recomendo muito a leitura combinada dos dois livros).

    É uma obra pesada que provoca bastante empatia em leitoras que não sejam negras e/ou mulheres, e a gente percebe que o fantasma do racismo está vivo no presente e sempre faz com pessoas negras revivam situações que já deveriam estar enterradas no passado.

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