A mulher na cultura nerd

O fenômeno nerd tem alcançado a estratosfera nos últimos anos. Seja por causa da internet, dos computadores, dos games ou por causa de The Big Bang Theory, a questão é que hoje todo mundo que quiser, pode ser nerd. Seja usando a camiseta do Sheldon, seja usando óculos pretos de armação grossa, seja com o uniforme da Frota Estelar, seja não usando nada disso, parece que algumas características o fazem ser um NERD. Mas para as mulheres não é assim tão simples.

A mulher na cultura nerd

Se antes as moças nerds eram acusadas de entrarem neste clube para conseguirem namorar ou para serem admiradas, hoje elas têm sido mais aceitas no nerdismo. Seria tudo muito legal se ainda não fôssemos desacreditadas e inferiorizadas, sofrendo com assédios, agressões verbais e físicas, abusos e perseguição, seja na internet, seja fora dela.

É muito difícil ouvirmos o termo "mulheres nerds". É sempre minas, meninas, garotas nerds, como se uma mulher adulta não pudesse ter gostos nerds, tampouco se declarar uma sem ser chamada de velha. Na boa, muitos caras nerds que conheço já passaram dos 30 anos e eles não são vistos como idosos. Tenho 33 e sou chamada de garota só por ser nerd? Posso até ter cara de jovem, mas não vão mais me confundir com uma garota de 18 anos.

Isso é uma amostra pequena de como a cultura hoje valoriza a juventude e a persegue (e nada mais jovial do que cultura nerd). Uma cultura onde a Madonna, com 55 anos, pulando e dançando num palco é considerada uma idosa (sendo que eu com 20 a menos não faço metade do que ela faz) e onde as revistas nos obrigam a buscar cada vez mais a fonte da juventude mágica onde possamos sempre manter a carinha de 15 anos, não é de se estranhar essa busca desenfreada.

Se buscar no Google por nerd woman ou nerd women, o que vai aparecer são mulheres que trabalham com computação, muitas deles mortas, ou que estão em cargos de presidência de grandes empresas de software. Não são mais garotas, mas dificilmente são chamadas de nerds. Para nerd girl... bem, a descrição é outra.

Mas e nós, reles mortais que curtimos ficção científica, games, quadrinhos, o que somos nós? Somos um objeto. Fomos objetificadas para caber em um ideal de moça nerd criado pela ala masculina de consumidores de cultura nerd. Vamos ao "checklist" da garota nerd ~ideal~:

  • óculos;
  • cabelos compridos lisos ou levemente ondulados;
  • não pode ser muito sexy para não ser chamada de puta;
  • se interessa EXATAMENTE pelas mesmas coisas que os caras se interessam (inclusive hentai);
  • não se interessa por MAIS NADA além de cultura nerd;
  • não tem personalidade própria além do gosto pelo nerdismo;
  • não deixa o amigo na ~friendzone~;

Ou seja, se uma mulher que se proclama nerd curte uma maquiagem, já era, não é nerd. Se ouve Shakira, já era. Se não curte aquela banda lituana de rock melódico progressivo, um abraço. Se aparecer usando uma roupa mais decotada, uma saia mais curta, corre que não é nerd, é puta. Se discute política, feminismo, futebol ou qualquer coisa não tida como NERD, rua! Criaram um estereótipo muito do mal feito em cima de moças que gostam de cultura nerd e muitos caras se acham no direito de dizer quem é nerd e quem não é. E ficam se lamentando de não encontrarem a "moça nerd perfeita".

Vejo pelas redes sociais que grupos e clubinhos de cultura nerd são pouco frequentados por mulheres. É como se a maioria ali ditasse o nível de nerdice que uma pessoa possa alcançar e se a moça não obtiver pontuação em todos os níveis QUE ELES estipularam, ela não é nerd. Eu mesma saí de alguns porque não curtia os papos sexistas e as imagens de cosplayers gostosas compartilhadas a torto e a direito. Uma boa parcela dos caras lá dentro reclamavam que não encontrava moças "nerds de verdade". Que fulana deixou o nerdão na friendzone (que é a coisa mais estúpida e imbecil que existe) e que ele esperava que moça sofresse por ignorá-lo.

Ok, deixa ver se eu entendi essa bagaça. Além de existir toda uma cultura sexista que prega que mulher boa é "mulher de verdade", agora também estão invocando a imagem da "moça nerd de verdade", idealizada, colocada num pedestal, sem vontades e gostos, prontas para servirem aos nerds de plantão, sendo aprovadas em todos os níveis de nerdice. E qualquer uma que questione isso é mal vista ou banida de certas páginas, apenas porque não representou o papel de "moça nerd de verdade". Acho que nunca um rapaz nerd foi questionado sobre quantas horas ele passou jogando RPG ou WOW, ou qualquer outro game, para ser considerado nerd. Mulheres são questionadas, pois parece que nossos gostos não são genuínos. Nem podemos ser noobs em algo.

Aqui mesmo no blog eu volta e meia recebo comentários que me desagradam e tentam me diminuir, pois eu tenho certeza que se fosse um homem escrevendo, eu não receberia as cantadas imbecis ("oi, queria te conhecer além do pseudônimo"), questionamentos tolos ("só pode ser um cara escrevendo isso, uma mulher não saberia tanto") ou ofensas mesmo ("sua puta nojenta, não aceita a opinião dos outros, se fode aí"). E mesmo assim, na moderação, muita gente faz ironias que me fazem olhar enviesado para o sujeito ou disparam a dar risada quando estou falando sério ou dizem "ahh vai, é brincadeira", quando eu me irrito.

Todas as imagens de moças nerds também são de nerds brancas. Então além do estereótipo sexista temos uma imagem pré-concebida também racista, como se negro só pudesse gostar e consumir pagode e funk. Eu vi isso em uma escola onde dei aula, onde uma moça nerd reclamava que os rapazes a subestimavam e até ofendiam. Uma moça inteligente e linda, de óculos, bem parecida com a moça da imagem acima (seus cabelos eram curtos), que jogava WOW como ninguém, ganhou a antipatia de alguns colegas, que diziam para ela "voltar para a quadra da escola de samba".

Em uma cultura onde a mulher é retratada normalmente como sexy nos enredos, como interesses românticos e vilãs sexies, não é de se espantar que seja tão difícil para as moças nerds serem vistas como seres humanos, que apenas querem comprar o último quadrinho do Homem-Aranha e ir para casa. Também não é difícil ver porque, quando as mulheres participam ativamente de seus hobbies ou atividades nerds, suas ações sejam percebidas como nada mais do que tentativas para agradar os homens. (...) A presença do nosso gênero não ameaça nem deslegitima a escolha de hobbies dos homens e, como tal, não deve ser questionada ou menosprezada por nosso interesse.

Jessica Bagnall (link inativo)

Subestimar e criar uma visão idealizada das moças e mulheres nerds nada mais é do que um reflexo da cultura machista que coloca mulheres a correr atrás de um ideal de beleza e comportamento, quando na verdade, todas as mulheres devem ser respeitadas, independente de seus gostos, de sua cultura ou do aparelho reprodutor com o qual nasceram.

É frustrante ver como somos inferiorizadas quando alguma coisa desvia do ~padrão~ de moça nerd criado e como moças são hostilizadas não apenas na internet, onde somos constantemente ofendidas e silenciadas, mas também em convenções mundo afora ou mesmo em comunidades tradicionais e tidas como sérias, como a SFWA (Science Fiction and Fantasy Writers of America). Quando o jogo Battlefield 3 foi lançado no Texas em 2011, as moças foram proibidas de participar a fim de evitar "comportamentos misóginos e insultos". Ou seja, vamos banir mulheres de participar do evento, ao invés de coibir este tipo de comportamento e educar os participantes.

Como combater uma cultura misógina é um trabalho longo, vejo mudanças pontuais que acontecerão ao longo do tempo, mas muito deste comportamento vai continuar até que os rapazes entendam que somos seres humanos e não objetos.

Até mais!

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Comentários

  1. Texto maravilhoso, mas uma dúvida que não me sai da cabeça: que banda lituana de rock progressivo é essa?! Me conta!

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  2. Parabéns pelo texto, ficou maravilhoso! Realmente, o "aah vai, é brincadeira" irrita demais!
    Achei as imagens que você usou no texto maravilhosa. Queria saber o nome dos artistas, se não for pedir demais :)

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