Resenha: Katábasis, de R. F. Kuang

Minhas últimas leituras de R. F. Kuang foram um pouco frustrantes. Abandonei Babel e o último livro da trilogia de A Guerra da Papoula foi uma decepção após dois livros tão bons. Então quanto este aqui saiu, fiquei receosa de começar a leitura e acabar abandonando ou, pior ainda, odiando com todas as forças a obra de uma das autoras contemporâneas mais bem-sucedidas. A premissa é simples, mas seu enredo não é!

O livro
O professor Jacob Grimes, o maior mago do mundo e um dos mais concorridos orientadores no programa de pós-graduação de Cambridge, foi parar no inferno. No começo não temos ideia do motivo, apenas sabemos que seus dois brilhantes orientandos no doutorado, Alice Law e Peter Murdoch, que competiam pela atenção de Grimes, decidem ir até buscar o professor e assim conseguir as melhores cartas de apresentação, que podem abrir todas as portas na área da magia analítica.

Resenha: Katabásis, de R. F. Kuang

Em todos os relatos, os viajantes que iam ao inferno raramente pereciam lá. Era no mundo dos vivos que encontravam seu fim trágico.

Grimes não é uma figura fácil. Acho que muitos orientadores se sentiriam muito bem descritos nesse sujeito. Ele é exigente, rígido, ultrapassa qualquer limite pelo sucesso e não se preocupa em quem vai pisar para chegar lá. Ter estudantes sob sua tutela servem mais para aumentar a plateia em torno do seu ego do que fomentar a pesquisa e criar mão de obra qualificada. E é por isso que eu me perguntei: então por que esses dois vão ao inferno tentar buscar o cara??

O inferno de Kuang não lembra em nada o inferno que costumamos ver pela mitologia e pela religião. Ao invés de monstros e lagos de lava borbulhante, vemos um lugar com estrutura rígida, julgamentos, hierarquia, nem um pouco diferente de qualquer programa de pós-graduação do mundo dos vivos. A diferença é que as almas podem passar a eternidade toda pelo inferno, sem nunca seguir adiante. Pelo menos, no mundo dos vivos, a pós-graduação eventualmente acaba (com você ou com um trabalho em mãos).

Os tribunais do inferno expõem os pecados e erros humanos e é preciso passar de um em um buscando o professor Grimes. Law e Murdoch não têm ideia de onde ele possa estar, então terão que trilhar esse caminho e torcer para toparem com ele. Se olharmos com cuidado, a impressão que dá é que eles se preparam muito bem para a tarefa. Munidos de relatos de autores clássicos como Dante e Orfeu, que puderam ver o inferno de perto e saíram vivos para contar a história, suprimentos e giz para suas maquinações, os dois logo percebem que a tarefa é muito maior do que imaginavam.

O livro começa com os dois embarcando na jornada após traçarem o pentagrama e as linhas do feitiço. Então o livro não demora nada para começar. A autora detalha o mundo da magia analítica com precisão, dando nomes de paradoxos, autores e até as melhores marcas de giz. Justamente por sua atenção aos detalhes que muitos leitores acharam que Katábasis seria um livro difícil. Os paradoxos, por exemplo, se relacionam ao sistema mágico utilizado pelos personagens, mas mais que isso, é também uma metáfora para os dilemas enfrentados pelos protagonistas. Além de ferramentas mágicas, eles são armadilhas narrativas enfrentadas por Law e Murdoch.

O Paradoxo de Sorites, ou Paradoxo do Monte, é um dilema lógico que questiona quando uma transição ocorre: por exemplo, ao remover um grão por vez, em que ponto um monte de areia deixa de ser um monte? A dificuldade reside na falta de um ponto exato de mudança, pois mesmo um único grão a menos, que não muda a natureza do "monte", não define um novo limite. Isso se reflete no livro, na jornada de Law e Murdoch, na forma como eles veem o mundo e como mudam diante de todos os desafios que enfrentam no inferno.

Admito que não consegui simpatizar muito com Law, em especial no começo da leitura. Ela é antipática em alguns momentos, mas depois percebi que Law precisou se tornar aquela figura intragável para poder entrar no mundo acadêmico. E infelizmente sua relação com Grimes não é das mais saudáveis. Qualquer mulher que fez mestrado e doutorado sabe como o meio acadêmico pode ser tóxico para as mulheres e com ela não foi diferente. Murdoch também sofre por outros motivos que conhecemos ao longo do livro e no final eu compreendia muito bem porque algumas decisões foram tomadas.

Essa era a chave para sobreviver na pós-graduação. Você podia fazer qualquer coisa se fosse iludido.

Kuang uniu magia, lógica, filosofia e mitologias grega e chinesa a um debate profundo sobre misoginia e estruturas de poder. A leitura é desconfortável em vários momentos porque percebemos que a estrutura do mundo acadêmico não parece mudar muito de país para país. A misoginia que Law vê em Cambridge não é diferente daquela que eu vi quando fiz mestrado e em vários momentos me vi em seu lugar, tendo que perseverar, estudar e entregar resultados num ambiente desses. A agilidade da narrativa de Kuang que vi em A Guerra da Papoula se repete aqui, então o livro nem parece ter quase 500 páginas.

O livro está bem diagramado e traduzido por Marina Vargas. Há mapas do inferno, cada um feito por Law e Murdoch, que nos ajudam a entender melhor sua estrutura. Encontrei alguns errinhos de revisão.

Obra e realidade
Catábase (do grego katábasis, κατὰ, "baixo", βαίνω, "ir") corresponde a qualquer forma de descida. Seu uso mais recorrente é na mitologia, onde o termo é usado para se referir a uma descida ao mundo inferior, seja ele o submundo ou o mundo dos mortos. O livro cita alguns personagens da literatura que fizeram essa jornada como Dante e Orfeu. No caso de Law e Murdoch, a descida é para resgatar seu orientador, uma missão que se torna uma jornada de autoconhecimento e sobrevivência.

Kuang escreveu o livro enquanto fazia doutorado em Idiomas do Sudeste Asiático e Literatura na Universidade Yale. Junto a isso, ela escrevia, dava aulas e planejava seu casamento. Foi então que ela teve essa ideia de que o meio acadêmico parecia o inferno, até que ela se ligou de que, de fato, a academia é um inferno.

R. F. Kuang

Rebecca F. Kuang é uma escritora de fantasia sino-americana.

PONTOS POSITIVOS
Law e Murodch
Bem escrito
Universo grande e bem construído
PONTOS NEGATIVOS
Longo demais
Violência


Título: Katábasis
Título original em inglês: Katabasis
Autora: R. F. Kuang
Tradutora: Marina Vargas
Editora: Intrínseca
Páginas: 480
Ano de lançamento: 2025
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
Essa foi uma das leituras mais intensas deste ano! Comecei sem saber muito bem o que achar, temendo desgostar de mais um livro de Kuang, mas a narrativa e os personagens me surpreenderam. Só espero que essa leitura não afaste ninguém da pós-graduação. Quatro aliens para o livro e uma forte recomendação para você ler também!

Até mais!

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