Tem sido bem difícil acompanhar as notícias diárias, vendo gente utilizar a ficção científica como desculpa para todo tipo de malandragem. Principalmente as notícias que envolvem bilionários, tão mancomunados com a extrema-direita, que é difícil dizer onde uma começa e o outro termina. Eles dizem que são grandes fãs de ficção científica e que cresceram lendo o gênero. E agora querem aplicar o que leram no mundo real.

A ficção científica vem inspirando o mundo real não é de hoje. Dos celulares da Motorola que imitavam os comunicadores da Enterprise, ao Big Brother, vemos as ramificações em vários estratos da sociedade. Tem quem acredite até hoje que a conspiração de Arquivo X seja verdade. Assim como tem gente que lê e assiste obras de ficção científica e não entenda o que está se passando nela.
Os techbros como Elon Musk e Jeff Bezos dizem que cresceram lendo ficção científica publicada entre 30 a 60 anos atrás e que usam essas obras como inspiração para seus projetos megalomaníacos. E aqui entra o problema: eles estão entendendo esses livros como manuais de instruções. Musk quer colonizar Marte (sem se importar se a Terra será queimada no processo). Bezos está de olho em habitats orbitais, como aquele que vemos em Elysium (e novamente dane-se a Terra e sua população pobre).
Marc Andreessen, da empresa de capital de risco Andreessen Horowitz e cofundador do Netscape, publicou um “manifesto tecno-otimista” onde promove uma bizarra filosofia que clama por um futuro não regulamentado, exclusivamente capitalista, de puro caos tecnológico, no pior estilo cyberpunk. Peter Thiel, cofundador do PayPal, está custeando pesquisa em inteligência artificial e em habitats no fundo dos mares. Enquanto Mark Zuckerberg torrou 10 bilhões de dólares na esperança de criar o Metaverso do livro Snow Crash, de Neal Stephenson.
Juntando toda essa galera e seus investimentos bizarros, temos mais de meio trilhão de dólares investidos para criar ambientes e tecnologias derivadas de obras da ficção especulativa que eles leram quando jovens. Mas qualquer leitora mais atenta para esse mesmo período vai notar o quão carregadas de avisos sobre cenários futuros caóticos elas eram e como as pessoas comuns eram impotentes e vítimas ao mesmo tempo.
Para o escritor China Miéville, é um erro ler ficção científica como se fosse realmente sobre o futuro:
É sempre sobre o agora. É sempre uma reflexão. É uma espécie de sonho febril e sempre sobre seu próprio contexto sociológico.
Ou seja, ficção científica não é sobre prever o futuro, é sobre ler o presente e extrapolar o que vemos nele. É bastante preocupante ver que homens com tanto poder nas mãos possuem uma capacidade tão baixa de senso crítico que os tornam incapazes de enxergar o óbvio. Consigo pensar no horror de Iain Banks ao saber que sua aclamada série de ficção científica, a Cultura (tem dois volumes dela publicados no Brasil pela Morro Branco) é a favorita de Elon Musk. Banks era um conhecido socialista que não entendia como a galera da direita era tão fã de sua visão de mundo, já que isso não impediu Musk de investir dinheiro na Neuralink, baseando-se em conceitos que leu nos livros de Banks. As plataformas de pouso usadas pelas naves da SpaceX são todas nomeadas em homenagens a naves da série da Cultura.
A ficção científica com a qual os bilionários de hoje cresceram, aquela que existia na década de 1970, remonta ao inventor e editor Hugo Gernsback. Gernsback publicou artigos gerais sobre ciência e tecnologia e, posteriormente, ficção. Ele começou a publicar a revista Amazing Stories em 1926 como veículo para contos fantásticos sobre um futuro tecnológico. A vertente de ficção científica de sua revista promovia a combinação do sonho norte-americano de sucesso capitalista, aliado ao solucionismo tecnológico sem tons de crítica e a um toque de colonialismo de fronteira.
Era uma FC que rejeitava o passado e celebrava a modernidade, as máquinas, a juventude, sempre de olho num futuro brilhante e bastante receptivos a pensamentos da extrema-direita. Outro grande editor da época, John W. Campbell Jr. (editor da Astounding Science Fiction de 1937 a 1971), promoveu muitos autores agora famosos, incluindo Robert Heinlein e Isaac Asimov, mas era um notório supremacista branco e machista, opositor de qualquer social-democracia.
Muito do que vemos nessa ficção científica clássica, como colonizar Marte e depois a galáxia, alcançar a imortalidade, priorizar os interesses de longo prazo da humanidade, é algo que fornece aos bilionários uma justificativa atraente para o autoenriquecimento e para justificar qualquer absurdo que eles achem razoável. Se a influência da ficção científica fosse apenas em design de produtos, não seria um problema. Sério, não seria. Se Zuckerberg quer torrar seu dinheiro em busca de uma fantasia pessoal baseada num livro, ou se Musk quer construir carros horríveis, a decisão é deles. Mas a partir do momento em que eles querem implantar a distopia na realidade, isso afeta o mundo inteiro.
Não vamos culpar a ficção científica por isso. Não é a FC que causa esse nível de sociopatia. Desculpem o clichê, mas é o capitalismo.
China Miéville
A ficção científica não segue os princípios do método científico em seu desenvolvimento. Ela evolui a partir do trabalho de artistas que buscam cativar um público mais amplo, muitas vezes recorrendo à adulação. Hoje, esse público inclui bilionários que cresceram lendo ficção científica e que não reconhecem os fundamentos ideológicos presentes nesse tipo de entretenimento juvenil, como o elitismo, o racismo travestido de ciência, a eugenia, o fascismo e uma fé despreocupada na tecnologia como solução mágica para os problemas sociais.
Essa inversão de significado é, na verdade, bem comum. Um bom exemplo está na forma como muitos líderes da tecnologia hoje enxergam os cenários distópicos tão presentes na ficção cyberpunk: como alertas proféticos de um futuro que precisam evitar a qualquer custo. Suas soluções? Colonizar Marte, construir metaversos ou, no caso do bilionário Peter Thiel, investir na criação de novas cidades-estado comprando terras em países em desenvolvimento. Curiosamente, nas obras originais do gênero, eram justamente pessoas como eles que ajudavam a dar forma às distopias. Ainda assim, de alguma maneira, eles conseguiram a proeza de transferir a culpa para as massas.
No fim, acho que sabemos a resposta para a pergunta que nomeia esse post.
Até mais!
Já que você chegou aqui...

"Ou seja, ficção científica não é sobre prever o futuro, é sobre ler o presente e extrapolar o que vemos nele."
ResponderExcluirÉ isso. E como é difícil as pessoas entenderem, né? Sempre me lembro daquelas reportagens do tipo "X previsões do futuro que a ficção científica errou". Engraçado que pouco falam do que ela "acertou", já que os artistas não inventam futuros do nada e sim refletem sobre tendências do presente. Poxa, vivemos em 1984 misturado com Admirável Mundo Novo com Neuromancer com Fahrenheit 451 com mais um monte de distopias que falam sobre ganâcia e controle das pessoas, e várias falam sobre capitalismo, mas parece que isso pouco importa para esses não cidadãos.
Mais um texto muito bom e muito necessário, Sybylla. Queria sua clareza em mais pessoas por aí.
Uma coisa realmente doida nesse pessoal rico, é que eles REALMENTE pensam que estão construindo o futuro. E existe uma lógica muito louca nisso: o longtermismo e a racionalidade eficaz (effective altruism). Os atuais bilionários acreditam nisso como uma espécie de religião tecnocrata, em que é melhor investir na construção do futuro, como colonizar marte, do que ajudar as pessoas que necessitam de ajuda agora.
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