Já posso considerar esta uma das melhores leituras do ano! Fiquei de olho nesse livro assim que li uma ótima resenha num site gringo. Pouco depois, descobri que a editora Zahar estava trazendo para cá. Então, quando me ofereceram a oportunidade de ler o ebook pelo NetGalley, nem pensei duas vezes! Sabe a história sobre a Grande Civilização Ocidental™️ que nos foi dada pelos gregos e romanos, como uma dádiva divina? Tudo mentira.
O livro
Esse papo de Grande Civilização Ocidental é bem disseminado por aí. Está nos livros escolares, nas salas de aula das universidades, aparece nas histórias infantis e nos filmes de Hollywood, sendo proclamada de maneira fervorosa, e às vezes até raivosa, por comentaristas de ambos os lados do espectro político. Sem questionar, assumimos que o Ocidente moderno é o guardião de uma herança privilegiada, passada através de uma espécie de genealogia cultural que costumamos chamar de “Civilização Ocidental”. Não somos herdeiros de uma tradição cultural única e elevada, que vem desde a modernidade atlântica, passando pelo Iluminismo e a Renascença, atravessando a "escuridão" do período medieval e chegando finalmente às glórias da Grécia e Roma clássicas.(...) a popularização e a longevidade da narrativa grandiosa da Civilização Ocidental decorrem de sua utilidade ideológica.
Naoíse Mac Sweeney desafia e reinterpreta a noção de “civilização ocidental” dos últimos 2500 anos, por meio das vidas e escritos de 14 mulheres e homens, desde Heródoto, o grande historiador grego do século V a.C., até Carrie Lam, a Chefe do Executivo de Hong Kong até 2022, que presidiu sua recente queda em um regime autoritário. A própria autora afirma que a ideia não é original e nem nova. No meio acadêmico, essa noção de uma "civilização ocidental" não é mais levada tão a sério e já há outros trabalhos esmiuçando como ela foi construída e como ainda se mantém no senso comum.
Mac Sweeney se propõe a explicar aos leitores comuns por que a ideia se consolidou e por que ainda se mantém, principalmente nos Estados Unidos, onde é vista como uma narrativa edificante para uma nação jovem, que não queria conectar sua história nacional com um legado de genocídio, limpeza étnica, escravidão em massa e ruína ecológica. Tanto a ideia é ainda popular, que o conceito do MAGA (o lema da campanha de Donald Trump "Make America Great Again") está enraizada nos "valores ocidentais" e foi o lema que levou os arruaceiros a invadir o capitólio quando ele perdeu a eleição.
A forma como a autora escolheu mostrar a evolução dessa ideia foi por meio de biografias de figuras do passado e do presente. Uma a uma, Mac Sweeney aborda velhos mitos sobre o caráter do mundo antigo, a natureza das Cruzadas ou a superioridade das potências europeias em disputas imperiais. Grécia e Roma, por exemplo, eram muito mais diversas e exuberantes do que o cinema nos faz acreditar. E Roma, principalmente, gostava de imaginar suas origens ligadas à Troia, e não à Grécia, como nos ensinaram na escola.
O livro foi estruturado em 14 biografias, falando sobre gregos, romanos e como culturas posteriores desprezaram, manipularam ou reivindicaram sua herança, não apenas nos países que hoje consideramos como parte do "Ocidente", mas também em toda a Anatólia, Oriente Médio, e de partes da África subsaariana até a Índia. Em todos esses casos, as culturas helênica e romana eram vistas como algo profundamente distintas. Mesmo a ideia dos gregos como uma unidade etno-política, em vez de um conjunto de estados diferentes sempre putos uns com os outros, foi em grande parte criada pelo imperador bizantino Teodoro II Láscaris no século XIII. Antes de ser reinventada durante a Renascença, a noção de uma "antiguidade clássica" greco-romana unificada pareceria algo inacreditavelmente estranho.
(...) a Antiguidade na qual os pensadores renascentistas se inspiravam era mais ampla do que apenas Grécia e Roma - abrangia também as culturas etrusca, egípcia e mesopotâmica. A noção de exclusividade que acompanha a ideia de Ocidente ainda estava por vir.
Para um livro com uma proposta ousada para o público leigo, ele foi muito bem escrito e é de fácil compreensão. A leitura fluiu muito bem, tanto que quando menos esperei, ela acabou. Leria mais mil páginas sem dificuldade. Mesmo vindo do passado, mais de 2 mil anos, é interessante notar como a temática se mantém atual, porque praticamente nada mudou. Mesmo no Brasil, alguns grupos, principalmente entre os que descendem de europeus, se veem como "ocidentais", reivindicando uma ancestralidade que é falsa e foi criada para justificar o injustificável.
A tradução foi da experiente Denise Bottmann e está ótima. Não encontrei problemas de revisão, diagramação ou tradução no livro.
Obra e realidade
A ideia de Civilização Ocidental não é apenas um mito no sentido de ser uma história que é contada e recontada, reproduzida e ensinada, mesmo sendo historicamente falsa. É um mito que foi criado para justificar a escravidão, o imperialismo e a opressão, sustentada principalmente pelos "pais fundadores" dos Estados Unidos, que arrotavam liberdade e ainda assim mantinham escravizados em suas propriedades. Como tal, o mito atendeu às necessidades ideológicas da época em que foi criado, refletindo os valores centrais daquela sociedade.Por sua vez, o Ocidente de hoje não tem mais os mesmos valores centrais de 300 anos atrás. Não precisamos de um mito de origem que está em conflito direto com os valores contemporâneos, como a democracia liberal, o estado de direito e a igualdade de direitos humanos, todos enraizados no imperialismo e na supremacia branca. Se queremos fortalecer a identidade ocidental com base nos valores que realmente nos definem hoje, precisamos derrubar o mito da Civilização Ocidental e encarar a Antiguidade na qual se baseia pelo que ela era: um lugar diverso, multifacetado, repleto de pessoas das mais diferentes origens, etnias, gêneros e orientações.
Naoíse Mac Sweeney é professora de arqueologia clássica na Universidade de Viena, tendo anteriormente ocupado cargos nas universidades de Leicester e Cambridge, e foi pesquisadora no Centro de Estudos Helênicos de Harvard. Ganhou vários prêmios acadêmicos por seu trabalho sobre a antiguidade clássica e os mitos de origem.
PONTOS POSITIVOS
Narrativa amigável
Bem escrito
Bem pesquisado
PONTOS NEGATIVOS
Preço
Narrativa amigável
Bem escrito
Bem pesquisado
PONTOS NEGATIVOS
Preço
Avaliação do MS?
Fico muito feliz quando uma leitura me ensina tanto a ponto de se tornar uma das favoritas do ano. Naoíse Mac Sweeney escreveu um livro não apenas informativo, mas educativo, repleto de fontes, notas de rodapé e explicações para mostrar que isso não é coisa da cabeça de uns poucos acadêmicos excêntricos, mas sim o estado da arte como é hoje, que precisa ser mais conhecido e debatido. O que Mac Sweeney faz é o que a gente espera de todos os escritores: entregar uma visão nova e melhor do mundo. Selo de Essencial mais do que merecido!Até mais!
Belíssima resenha, capitã! Fiquei muito interessado nessa obra.
ResponderExcluirAcho que você vai curtir, Jaime! 📖
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