Resenha: A segunda mãe, de Karin Hueck

Descobri que este livro era uma distopia quando vi um anúncio da editora Todavia lá pelo Instagram e ele logo me interessou. O que começa como um drama familiar entre duas mulheres presas na rotina doméstica se transforma em algo bem mais sombrio páginas depois.

O livro
O casamento de Madalena e Andrea parece perfeito. Elas moram numa bela casa, em um bairro novo e agradável, com uma menininha, chamada Rosa que, como toda criança, toma bastante tempo e dedicação de Madalena, sendo aquela que fica em casa, cuidando de tudo, enquanto Andrea tem um cargo importante no governo. Mas o verniz de perfeição e segurança escondem a insatisfação de Madalena, ou Lena como é muitas vezes chamada, pois ela não poderia estar mais irritada com tudo. Depois da festa de aniversário da filha que deu errado devido à chuva que acompanhamos a rotina do casal.

Resenha: A segunda mãe, de Karin Hueck

Lena percebeu quanto o ressentimento pesara dentro dela nos últimos anos. Os dias trancada em casa haviam deixado nela sedimentos de mãgoa, que arrastava consigo de um lado para o outro como correntes.

Lena se ressente da rotina do lar, das exigências alimentares da filha, das horas extras de Andrea. A casa a oprime, as tarefas domésticas. As pequenas escolhas do cotidiano, colidindo com as grandes decisões, o peso da maternidade, além de toda a interferência de outras mães que sempre achavam algo para opinar, criticar e dizer sem que Lena nada pudesse fazer para barrar. Cansada disso tudo, ela pede a Andrea que a deixe trabalhar fora. Essa seria a única maneira de não enlouquecer dentro daquela casa.

Interessante apontar que mesmo em um relacionamento entre iguais há camadas de opressão em diferentes níveis. E conforme vamos lendo e mergulhando nesse relacionamento que já está sobrecarregado, descobrimos duas coisas importantes: a primeira é que Andrea está grávida de novo, ainda que o relacionamento esteja muito desgastado, e a segunda é que este mundo em que o casal vive já eliminou uma grande opressão que afetava mulheres do mundo todo: os homens. Os poucos que sobraram são mantidos isolados da sociedade, vigiados, com propósitos voltados apenas para a reprodução.

Existem momentos excelentes ao longo da leitura que nos fazem pensar em como a estrutura da nossa sociedade é bizarra. São vários apontamentos e críticas, desde as ambientais até sobre a estrutura dos papéis de gênero, as estruturas sociais, os relacionamentos e violência doméstica. Em um episódio interessante, Rosa acaba com medo de ser confundida com um menino e a Lena precisa explicar para a menina como o mundo era ruim com a presença deles. Ruim e incompreensível e que agora elas estavam seguras. Logo percebemos que este mundo, em um tempo indeterminado, não fala do presente, ainda que seja muito real e onipresente em nossas vidas.

Karin escreve com muita competência e fluidez. É fácil e rápido devorar o livro, pois ele tem menos de 200 páginas. A autora brinca com os estereótipos de gênero e a forma como os homens são retratados, de maneira a justificar a divisão social que os mantém encarcerados. Tem uma passagem que me arrancou uma risada sincera sobre "nem todo homem"... De toda forma, parece uma lógica justa, certo? Se os homens cometem a maioria dos assassinatos, dos estupros, das violências em geral, prenda todos eles e teremos paz. Mas não é bem assim, ainda que a autora não mostre esse outro lado.

O grande problema do livro é seu tamanho. Ele é justo demais para explorar a distopia que a autora propôs. Enquanto toda a crise de Andrea e Lena está bem retratada, a parte distópica, aquela que deveria tratar deste novo mundo tão diferente, está pouco explorada. Sinto que a autora colocou o ponto final, enviou para a editora e a Todavia mandou imprimir e colocar nas lojas, pois ele é cru não por ser seu objetivo, mas por faltar edição. E nem precisava de cem páginas a mais, com umas cinquenta dava para falar muito mais, explicar e finalizar sem parecer uma obra incompleta.

Viver é acumular saudades.

A sensação de livro incompleto também se faz presente por alguns erros grotescos que não foram revisados e pela mudança abrupta de visões de personagens entre um parágrafo e outro. Tive que voltar e reler algumas partes porque essas visões brotavam do nada e deixavam a leitura confusa. A revelação do final foi interessante, inesperada e acaba fazendo bastante sentido quando a gente pensa na jornada de Lena e Andrea.

Um destaque vai para a capa de Ciça Pinheiro.

Obra e realidade
Karin Hueck disse em uma entrevista à revista Veja que de certa maneira o mundo também não tem mulheres. Somos a minoria nas casas legislativas da grande maioria dos países. O Brasil só teve uma mulher presidente (e Estados Unidos nenhuma). Remédios são testados apenas em homens, o que eleva os problemas causados por intoxicação, envenenamento e superdosagem em mulheres. Mulheres são duas vezes e meia mais propensas a apresentar reações adversas a uma droga e ainda assim os estudos feitos pelas companhias farmacêuticas indicam dosagem baseada no organismo masculino.

Distopias como a de Karin nos ajudam a visualizar mundos onde o exagero é proposital. As distopias são pensadas dessa forma, de maneira a pegar um aspecto social, uma condição e exagerá-la, pois apenas assim certas críticas e racionalizações podem ser feitas.

Karin Hueck

Karin Hueck é uma escritora e jornalista brasileira. Publicou livros infantis e de não ficção, entre eles O Lado Sombrio dos Contos de Fadas. Entre 2018 e 2019, foi pesquisadora convidada de política e gênero na Universidade Livre de Berlim. A segunda mãe é seu primeiro romance.

PONTOS POSITIVOS
Lena e Andrea
Bem escrito
Crítica social
PONTOS NEGATIVOS
Curto demais
Preço
Questões em aberto


Título: A segunda mãe
Autora: Karin Hueck
Editora: Todavia
Páginas: 176
Ano de lançamento: 2023
Onde comprar: na Amazon!

Avaliação do MS?
O livro não é uma crítica aos homens, aos indivíduos em si, antes que apareça um paraquedista por aqui pra chorar as pitangas. É uma alegoria para a situação das mulheres ao longo da história, já que o mundo foi organizado e construído sem a nossa participação. Por isso, a autora mostra um mundo onde elas estão no comando e quais são os problemas que isso envolve. Apesar dos pesares, do ritmo ruim em alguns momentos, é um bom livro. Três aliens para A segunda mãe.


Até mais! 🥀

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