Literatura pode tudo, inclusive abraçar

De tempos em tempos aparece alguém que tenta encaixotar a literatura no que ele acredita que ela deva ser. "Literatura não deve abraçar ou confortar, quem faz isso é religião", e por aí vai. O que me choca nesse tipo de fala é o reducionismo. Dentro da literatura nós podemos tudo, porque podemos fazer de tudo dentro dela. De traumatizar a abraçar, de confortar a punir, de informar a desinformar. E entenda, isso não tem a ver com gosto pessoal, mas sim com tentar determinar como os outros devem se sentir com relação à literatura.

Literatura pode tudo, inclusive abraçar

Não é de hoje que tentam encaixotar a literatura em formatos e estilos desejados. No mínimo uma vez ao ano surge alguém para dizer o que ela deve fazer, como deve ser, como leitores devem encará-la. Este tipo de pensamento já se traduziu de diversas maneiras. Um bom exemplo é como os acadêmicos trataram literatura e fantasia por um bom tempo, limitando-se aos estudos de obras "literárias" ao invés das obras "especulativas", acreditando que só a primeira tinha valor. Isso vem mudando de uns tempos para cá, mas ainda vemos bastante preconceito de quem acha que isso tudo é "apenas escapismo".

Para alguns, a literatura deve apenas nos deslocar, nos tirar do conforto e nos fazer enxergar as dores de existir, escancarar as atrocidades, nos fazer ver o deserto do real. Muitas discussões ainda são feitas em torno de obras polêmicas, discutindo o que o autor disse ou queria dizer, sempre retornando à maneira como ela aborda o lado vil e sujo da humanidade. E não estou negando o sofrimento humano. Muito menos negando que devemos ter essa consciência, porém a literatura não serve só para isso. Tal como a humanidade é complexa e cheia de nuances, a literatura também é.

De uns tempos para cá, muitos livros considerados de "literatura de cura" ou "literatura de conforto" surgiram e estão ganhando adeptos. Principalmente entre grupos muito marginalizados, autores estão trazendo a seus leitores obras que abraçam, que aceitam, que conversam com eles. E estes livros fazem sucesso porque esses grupos nunca tiveram uma expressiva representatividade e quando têm, alguém aparece para dizer que esse tipo de literatura não deveria existir. Percebe o que está acontecendo aqui?

Se a sua literatura quer apenas chocar e brutalizar os leitores, o que exatamente você está querendo dizer? Que as dores das pessoas importam menos que a sua arte? Que uma pessoa buscando uma leitura que conforte e abrace vale menos por que você é incapaz de abraçar e compreender que algumas pessoas precisam disso? Que para algumas pessoas a realidade é muito mais brutal e chocante do que aquela mostrada na literatura "séria" e que tudo o que elas querem é um livro que diga "tudo bem, estou aqui com você"?

Não podemos correr dos problemas. É óbvio que há momentos em que a literatura deve nos fazer pensar e refletir sobre uma série de coisas. É claro que personagens problemáticos existem e devem ser retratados, mas se uma pessoa quiser apenas ler para se divertir, para sorrir e se sentir bem, qual é o problema? Se a leitura não puder mais confortar, qual é o próximo passo, proibir a risada também?

Tentar definir o que a literatura deve ou não fazer é rebaixá-la a uma "literatura de verdade", a uma "alta" ou "baixa" literatura. E volta e meia essa ideia é reciclada. Tem quem diga que literatura só serve se forem os livros clássicos, ou que se você não ler literatura brasileira, não é um leitor de verdade. Tem aquela galera que acha que livros eróticos não são literatura, assim como quem desconsidera o poder dos quadrinhos ou da ficção especulativa. É defender o elitismo, é defender que apenas algumas pessoas tenham acesso aos livros, já que a "literatura não deve abraçar". Literatura pode tudo; nos livros podemos sofrer, sorrir, chorar, se irritar e xingar, amar e ser amada. Porque é esse o poder da ficção, de nos fazer sentir.

Então deixe as pessoas sentirem o que quiserem. A literatura é como um oceano, onde todos os componentes químicos da tabela periódica estão dissolvidos, formando este líquido incrivelmente complexo e vital para o planeta. E assim como ele tem seus abismos escuros e insondáveis, também tem as ondas calmas e suaves para nos embalar na praia.

Até mais! 📚

Já que você chegou aqui...

Comentários

  1. Uau, parabéns pelas palavras. Eu acredito que temos milhares de opções de literatura para isso, para cada um ler o que gosta, o que sente prazer. Se for para fugir da realidade, ou para ler o que a realidade impõe, que seja uma leitura que agregue. Pois é tão bom ler. E é bom diversificar de vez em quando também.

    www.vivendosentimentos.com.br

    ResponderExcluir

Postar um comentário

ANTES DE COMENTAR:

Comentários anônimos, com Desconhecido ou Unknown no lugar do nome, em caixa alta, incompreensíveis ou com ofensas serão excluídos.

O mesmo vale para comentários:

- ofensivos e com ameaças;
- preconceituosos;
- misóginos;
- homo/lesbo/bi/transfóbicos;
- com palavrões e palavras de baixo calão;
- reaças.

A área de comentários não é a casa da mãe Joana, então tenha respeito, especialmente se for discordar do coleguinha. A autora não se responsabiliza por opiniões emitidas nos comentários. Essas opiniões não refletem necessariamente as da autoria do blog.

Form for Contact Page (Do not remove)