Godzilla e armas nucleares

Em 1954, estreava no Japão um filme chamado Gojira, ou Godzilla como as audiências ocidentais o conheceram. Mas muitas pessoas saíram chorando das salas de cinema com as cenas de destruição causadas pelo monstro radioativo ainda muito frescas na memória depois do bombardeio nuclear de Hiroshima e Nagasaki durante a Segunda Guerra Mundial. Desde o começo, os produtores pensaram no longa como uma reflexão sobre o uso de armas nucleares e as consequências inimagináveis de seu uso. Mas essa mensagem foi desvirtuada quando o filme chegou aos Estados Unidos e a outras audiências ocidentais.

Godzilla e armas nucleares

O tema do filme, desde o início, foi o horror da bomba.

Tomoyuki Tanaka, produtor de Gojira (Godzilla)

O bombardeio das duas cidades japonesas causou entre 130 mil e 225 mil mortes imediatas. Nos quatro meses que se seguiram, um número igual de pessoas morreu devido a ferimentos, queimaduras e doenças causadas pela radiação. Foi também em 1954 que os norte-americanos testaram uma bomba de hidrogênio numa ilha desabitada, nas Ilhas Marshall. Os efeitos da detonação atingiram uma traineira de atum japonesa, a Fukuryu Maru (Dragão da Sorte). A contaminação por radiação atingiu toda a tripulação e um deles morreu. Era uma lembrança dos efeitos das bombas quase uma década depois. Gojira chegaria aos cinemas pouco depois do incidente com a traineira, como uma metáfora para o trauma causado pelas bombas, levando muitas pessoas às lágrimas em suas exibições no Japão.

O enredo do longa fala de uma criatura reptiliana e bípede de 45 metros de altura, despertado de sua quase eterna hibernação submarina por testes norte-americanos de bombas atômicas e de hidrogênio no Pacífico. Irritado, ele destrói tudo em seu caminho em sua passagem por Tóquio. O filme foi produzido pelos estúdios Toho e seu diretor foi Ishirō Honda. O nome “Gojira” (ゴジラ) – mais tarde alterado para “Godzilla” para o mercado norte-americano – era uma combinação das palavras japonesas gorira (ゴリラ, gorila) e kujira (鯨クジラ, baleia).

Godzilla afunda navios no mar e ataca cidades à noite, assim como os bombardeios noturnos dos B-29 norte-americanos. Ele desencadeia incêndios com sua “respiração atômica”. Os norte-americanos queimaram Tóquio e começaram a usar napalm em 1945. O monstro destrói cidades e deixa homens, mulheres e crianças japoneses feridos, queimados, mortos e moribundos. O diretor Honda foi soldado do Exército Imperial estacionado na China e viu essas mesmas cenas ao desembarcar por Hiroshima após sua repatriação. A pele áspera de Godzilla foi desenhada para lembrar aos espectadores as cicatrizes e queloides nos corpos dos sobreviventes da bomba atômica. A forma de sua cabeça pretendia representar a de uma nuvem em formato de cogumelo. Assim, o filme era um aviso destinado a evocar tanto a capacidade destrutiva das armas nucleares como a vitimização nuclear do Japão.

Apesar de todo o horror que a criatura causa, ele também é visto como uma vítima dos testes atômicos. Ou seja, tanto os seres humanos quanto o próprio monstro têm um inimigo em comum: as armas nucleares. Godzilla inaugurou todo um sub-gênero de filmes de ficção científica e terror, ao apresentar o Kaiju (怪獣), termo japonês geralmente associado a produções envolvendo monstros gigantes. O termo também é usado para se referir às criaturas em si, que são vistas atacando cidades e combatendo militares e até outros monstros.

Pôster de Godzilla, de 1954
Pôster do filme de 1954
Os filmes de Godzilla têm sido frequentemente criticados por seus trajes cômicos de borracha, efeitos especiais ruins e pancadaria de monstros no estilo luta livre profissional. Ao todo, a franquia conta com pelo menos 38 filmes, sendo 33 deles japoneses e cinco longas norte-americanos. Existem ainda quadrinhos, novelizações e videogames, que expandiram o universo do filme original. Infelizmente, para a audiência norte-americana, o sentido original do filme de 1954 foi modificado. A maioria achou que era um filme cômico e o encarou como um filme cafona de monstros.

Hollywood pegou o filme original e eliminou sua mensagem política antes de apresentá-lo ao público norte-americano para se desviar a atenção dos Estados Unidos de sua responsabilidade ao lançar as bombas. O longa serviu como uma forte declaração política, representativa dos traumas e ansiedades do povo japonês em uma época em que a censura era extensa no Japão devido à ocupação norte-americana do país após o fim da guerra. A tela mostrava o que muitos não conseguiam dizer explicitamente, uma experiência catártica, que levou às lágrimas uma parte da audiência original.

Dois anos depois de seu lançamento, Godzilla chegou aos Estados Unidos como Godzilla, Rei dos Monstros!, mas fortemente editado, onde um ator branco, Raymond Burr, foi colocado no papel principal. Cerca de 20 minutos de material original, em especial a parte da responsabilidade política, foram cortados da versão norte-americana. Entre as cenas cortadas estava aquela em que os passageiros de um trem fazem a ligação entre Hiroshima e o ataque de Godzilla, bem como fala final original, onde o professor de biologia, Dr. Yamane, alerta que se os testes nucleares não pararem, outro Godzilla poderia aparecer.

Pouco da mensagem no filme original foi restaurada em adaptações posteriores. No filme Godzilla de 1998, estrelado por Matthew Broderick, por exemplo, a criatura surgiu a partir de um teste de bomba atômica feito pelos franceses, e não pelos norte-americanos, na Polinésia. Nos filmes lançados pela produtora Legendary, o monstro é retratado como um dinossauro pré-histórico que emergiu da Terra e deve ser destruído por bombas nucleares, tornando-se um “gesto quase humanitário para salvar o mundo dos monstros”.

Godzilla é um dos símbolos mais reconhecidos da cultura popular japonesa em todo o mundo e continua a ser uma faceta importante dos filmes japoneses. A aparência vagamente humanoide e os movimentos tensos e desajeitados de Godzilla tornaram-no querido pelo público japonês, que poderia se relacionar com Godzilla como um personagem simpático, apesar de sua natureza irada. O público responde positivamente ao personagem porque ele age com raiva e autopreservação e mostra onde a ciência e a tecnologia podem dar errado. Mas ele ainda age como um lembrete de um trauma coletivo e foi evocado novamente com o desastre na usina de Fukushima.

Embaixador cultural de Shinjuku desde 2015, inspiração para Steven Spielberg, Martin Scorsese e Tim Burton, nome de dinossauro e até de um asteroide, a criatura Godzilla é um fenômeno pop que transcendeu seu sentido original e tornou-se um símbolo. Felizmente as audiências atuais podem assistir ao clássico de 1954 em seu formato original que foi remasterizado em 2022. Que ele continue a inspirar e a criar consciência política nas audiências, que foi seu sentido inicial.

Até mais!

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